terça-feira, 4 de novembro de 2025

Contando com gentilezas

 A loucura é tanta que tá dando enjôo. O nirvana tem efeitos colaterais. Pressão baixa, escutei uma vez. Tremores sutis. Porque a coisa louca de usar a voz. É quem quer que eu cante, a brisa me soprou e neste exato momento soprou de novo, pra me trazer ao meu próprio corpo muito louco. 

As janelas estão todas fechadas mas já há uma porta de casa aberta. Sem tremer, sem chorar. Tremendo um pouco, sem trepidar. 

Contando com algumas gentilezas dos homens.

domingo, 5 de outubro de 2025

Corpos na meca brasileira

Duas mulheres negras reconhecem-se no vendaval da meca brasileira. O som ambiente é muito alto aos ouvidos delas. 

É tão bonito e reconfortante para uma delas. Intuitivamente parece reconfortar as duas mulheres apenas por serem elas ali naquele momento. Por recados dados por seus corpos, comunicam-se, nem precisam falar para transmitir mensagens uma a outra. Uma coisa inexplicável, porém constatável, sensivelmente constatável.

Em encontros como esse é que a vida parece mostrar suas qualidades na atualidade. Sim, porque, para haver esse reconhecimento entre duas mulheres negras, foi preciso atravessar anos de escravidão e muita dor, continuamente encarando o racismo, o machismo e o classismo ao mesmo tempo. 

Essa dor da história também está presente no encontro de mulheres negras quando uma delas não reconhece a outra como mulher negra. 

Andam por aí falando de parditude, mas talvez seja tanta dor da história presente na vida dessa mulher que, diante de qualquer indício de branquitue, ela reaja, mesmo que seja contra outra mulher negra. Podemos citar as relações estabelecidas na meca brasileira, onde a maioria das funcionárias são negras e as clientes brancas - quando um cliente negra se apresenta diante da funcionária negra, esta última reage com recados dados através do seu corpo, com a sua cara fechada, com seu aparente mal humor em servir a uma outra mulher negra. Isso é muito ruim pois, ao invés de ser um encontro entre mulheres capazes de se cuidarem e reconhecerem-se em suas qualidades, provoca um afastamento entre elas se ambas não conseguem entender de onde vieram. 

Em ambos os encontros falam de um lugar de reconhecerem-se na dor, mas um causa conforto e o outro escancara o mal-estar. 


"Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor." (Malcom X.)


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A ilusão protege e desprotege a mente civilizada

 Escutei o miado de um gato filhote durante a madrugada. Fui acordada por esse som e, por um importante momento do meu sono sagrado, com meus olhos abertos já sentada na cama, por um pensamento convicto de que era o meu gato que veio ao meu encontro. O gato que eu venho desejando encontrar havia me encontrado finalmente nesta incrível madrugada de sono arrombado por miados. 

Agora uma ave soa seu canto tão agudo e prolongado quanto um miado. Mas é dia. Nem coruja eu escuto aqui de noite. 

Deitei e me dediquei mais uma vez a volta do caminho, tentei me despedir do estado de vigília. O som insistia e novamente me pus sentada na cama. O cachorro nem se abalou. Comecei então a duvidar da existência do gato que era meu. 

De onde estaria partindo aquele som? O dia não apontava, a escuridão abriu as suas mil portas. Insano seria eu me levantar e sair procurando. Os miados eram reais. De bicho filhote. A certeza apontava para a existência de um gatinho miando e fazendo a sua súplica. De fome. Chamando por sua mamãezinha que saiu para caçar. 

A ilusão protege e desprotege a mente civilizada. Dessa vez protegeu, um pensamento de sossegar o imaginário e voltar a dedicação ao sono sagrado assim que os miados pararam. 





segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O problema dos outros e salvar o mundo

 Não posso, de não poder, não ter poder mesmo. O cão farejou e enquanto isso eu senti um cheiro de ferida. Já sentiu cheiro de ferida aberta? Eu tenho que prestar muita atenção ao que o cão fareja pois ele pode comer o que não deve. As ruas cheias de punhados de ração, de ossos assados ou cozidos de galinhas ou de bois, restos de comidas diversas que depositam nas ruas do centro para os famintos humanos e animais. Passarinhos comem, cães de rua comem, moradores de rua comem. 

O cheiro de ferida se confirmou numa simples e breve farejada. Também é possível sentir quando há olhares direcionados a você. Levantei minha cabeça que ainda mirava o que o cão farejava, mas nem ele mesmo parecia ter encontrado algo, apenas buscava. Parecia uma cena de filme de ciborgues, o gato deitado em posição de relaxamento virou a sua cabeça em minha direção e o cheiro de ferida ganhou nome. Sua cabeça aberta, um olho seu nem existia, virou pra me mirar. Ele estava dentro de um estabelecimento comercial, talvez nem soubesse dele lá... Parecia pleno tomando o seu banho de sol que surgiu enquanto o dia chuvoso estiava.

Sua cabeça aberta e o cheiro da ferida poderiam ter me comovido e, comovida, eu mudaria todo o meu dia pra tentar devolver a saúde daquele bicho, gastaria rios de dinheiro com a sua recuperação. Mas algo me protegeu dessa comoção. Não se se pela plenitude do seu olhar, não sei se por já ter trabalhado uma manhã inteira escutando as angústias humanas, ou pela química ingerida todos os dias para me ajudar a dar conta do que sinto, ou por talvez eu ter encontrado o entendimento de que na estrada dessa vida eu posso pouco e preciso sentir que meu poder é limitado. 

O gato não miava, não arfava, não gemia. Ele apenas sentiu a minha aproximação e virou a cabeça quebrada pra me olhar. Parecia resignado com seu cérebro à mostra. Nem mosquitos o rodeava. Eu passo por ali todos os dias e não o conhecia mas poderia ser um dos gatos que eu vejo todos os dias e todos os dias todos olham pra mim. Procurei um pouco da minha piedade, um minuto antes um preto velho se arrastava pela rua e pediu meu cão pra ele caso eu desejasse me desfazer. Respondi que não. 

Se eu não tivesse o cão, pegaria aquele gato acidentado? E se o gato não deixasse eu prestar a minha piedade? O meu poder se encerra diante do poder do outro. Assim, ninguém tem muito poder nessa estrada, onde o Real é quem pode mais e o que me cabe é dar conta dele sem potencializar tanto a minha sensibilidade. Uma sensação desagradável barrar a sensibilidade, mas possível.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O perdão e a mentira

O perdão é uma coisa inventada e na minha cabeça inventar o perdão é praticamente improvável. Assim, a insegurança afetiva que uma pessoa me provoca, será lembrada sempre. Nessa atualização da insegurança há sofrimento. Talvez as pessoas perdoem para inventarem de esquecer de sofrer e talvez a capacidade de inventar delas seja muito superior a minha. A minha capacidade de inventar inventa outras coisas. 

Infelizmente a insegurança afetiva está presente em qualquer relação humana, mas é principalmente na infância que a sua presença deixa marcas, mesmo que o perdão tenha sido inventado, o pequeno corpo registrará e não esquecerá. Assim, ao se tornarem adultos, evitarão situações ou pessoas que lhe remetam à insegurança afetiva. Ou então viverão na insegurança, talvez o único ambiente que lhe foi oferecido e portanto, ao não experimentar outro lugar, vive a repetir desse mesmo lugar. 

Sustentar uma mentira dá muito trabalho, há que se repetir até acreditar e é passível de esquecer até a mentira que mentiu. Pelas inseguranças já vividas, eu duvido das pessoas. Todas as pessoas. Acreditar mesmo, ultimamente, somente no meu cão e nos resultados obtidos no meu trabalho. O cão não usa a palavra, assim não mente. O meu trabalho depende do outro para acontecer - posso até dizer que acredito nesse humano que busca uma análise, afinal, é na força do desejo de viver que há busca. 

O que o leitor pensa, nessa hora solitária da escrita para quem escreve e para quem lê, não tenho como saber a não ser do lugar de quem escreve. Já desde a palavra solitária, a mentira. A palavra mente. Eu sobrevivendo com as garras nas bordas, tento me fazer dela, tornando públicas e inafiançáveis essas palavras para a distensão. 

Um bebê ao qual não são dedicadas palavras quando ele chora, pode ter a sua segurança afetada. Uma criança que constantemente assiste a brigas entre seu pai e sua mãe, terá sua segurança afetada em algum nível da sua subjetividade. 

As palavras mentem mas elas são afetos, bons ou maus, seus efeitos são singulares. 

As palavras mentem ao ponto de inventar o perdão, por isso entendo que o perdão é algo insustentável. Mentira pura. Joguinho de palavras. 



sábado, 23 de agosto de 2025

 Eu vi o rio vermelho hoje em uma breve passagem pisei na areia, senti o cheiro da praia, molhei meus pés, minha nuca e minha testa e provei do mar. Banhei meu cão no sal das águas. Agradeci a minha mãe pelas graças que alcancei. 

A maré vazia e o som das ondas quebrando as pedras. Explosões em série de espumas brancas. Poças transparentes e vestígios das mudas das pinaúnas. 

A prainha toda vazia e fresca. Meu cão arrefecendo seu corpo antigo na beira da praia do rio vermelho, lugar das nossas vadiagens. 

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Há pessoas que criticam Lacan por usar o Nome-do-Pai mas eu quero acreditar que elas desconhecem a teoria lacaniana, eu freudiana. Lacan me esclareceu muita coisa quando apresenta a instância do simbólico e a aquisição dos significantes. É preciso que algo se faça presente na ausência da função materna para que a criança adquira sua capacidade de nomear as coisas, as coisas da vida. O pai, encarnado, propriamente dito, pode existir na vida de um sujeito. Mas não é uma regra geral. Há muitas pessoas nascidas no Brasil sem o nome do pai na certidão do seu nascimento, muitas vivem e viveram a ausência do seu genitor no desenvolvimento de sua vida. Nesse casos, o que realiza e interferência na relação mãe -filho pode ser o trabalho, ou outra pessoa, ou até uma instituição. Portanto, mãe é aquela pessoa que faz a função materna, a função paterna não precisa ser chamada de pai, pois é aquela pessoa ou aquilo que faz a função paterna. A mãe deve ser sempre uma pessoa, quem faz a função paterna não necessariamente, o importante é a entrada na linguagem, na possibilidade de nomear a ausência através dos significantes, portanto a entrada no simbólico. Daí advém a estrutura psíquica. 

A presença ou ausência do pai, pessoa física, genitor, pode deixar marcas na vida de qualquer pessoa, mas de maneira singular. Um pai presente mas agressivo, um pai ausente, por negligência, são apenas exemplos que podem afetar a subjetividade da criança comprometendo a sua entrada na linguagem. 

Também vale ressaltar sobre as crianças em famílias homoafetivas, a segunda mãe ou o segundo pai é quem vai fazer a função, compondo a relação triangular.


Isso é Freud e Lacan, não fui eu quem disse, através deles eu vou à clínica psicanalisar com muito chão já galgado. Ha pessoas que são reconhecidas como psicanalistas mas entendem o pai como um ser encarnado em um homem. Um entendimento desse reduz a confiabilidade no trabalho dessas pessoas, revelando tendenciosidade conservadora em relação à função paterna.