quarta-feira, 30 de abril de 2025

A história do bombom envenenado

 O primeiro dinheiro que recebeu gastou tudo em doces mas lembrou de guardar um bombom para ela. Dias e dias cujos dias nem saberia contar, foram passando, o bombom guardado esperando o dia do próximo encontro chegar. Afinal, teria que pagar para se encontrar e fazer o seu próprio trabalho por via dela. Gesto genuíno, puramente de amor, se realizou.


O bombom foi parar em minhas mãos e eu quis registrar, mas não. É um pagamento e se fez. Justamente no dia depois do outro que foi resolvido a redução da ingestão de doces. A vontade ultrapassa a resolução. A lógica é do inconsciente. Como pensar em quem sabe um doce e ele se materializar nas mãos pequeninas de quem o oferece às minhas mãos.


O corpo banhado de histórias trágicas barra as mãos rasgando a embalagem rosa choque. Pode estar envenenado o bombom. Ele duvida do amor encarnado na transferência que quer envenenar. A boca tira um muito pouco da cobertura e espera passar a saliva pela garganta. Nenhum sinal de mal. Nenhum sinal de morte. E os dentes mordem. A língua adocicada pelo veneno do amor.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Quem já cantou se olhando no espelho? Abriu bem a boca, fez as sílabas melódicas com bastante afinco, de cabelo solto e despida nesse reflexo? Quem já teve que olhar pro espelho quando o avião arremessa e de vez em quando durante a viagem para suportar a travessia?

Pela ampliação do espelho, o conforto e, por isso, eu vejo, cada vez mais as pessoas ganhando dinheiro por ficaram falando pra uma câmera, conversando sozinho, sobre o que sai somente da sua boca, se  foi pago pra falar com ninguém. Há uma psicose ordinária, dizem os psicanalistas de hoje, uma estruturação com a imagem do corpo que pode falhar na operação de simbolização, de entrar na palavra e metaforizar e desarranja o empenho da comunicação.

Usar o espelho para ampliar é mais do que se colocar em frente ao espelho. A amplitude mostra que há mais espaço pra viver e tem pessoas nesses espaços, de maneira espaçadas, mas presentes - , é perceber o outro.

Fazer contato com o outro. Isso tem surgido ao analisar as capacidades de fazer contato das pessoas. Ouvi dizer que Freud disse que é a pior das angústias a relação entre seres humanos.

Se as crianças estão expostas passivamente às telas ou fazendo-as de espelho que mira enquanto canta no espelho, só e despida, há um tempo lógico que não passa, mas o dinheiro de hoje pode pagar.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

A inquietude é vida quando ela atiça a criação. O mal-estar também é vida, acredite se quiser. Posso até acreditar mas não me conformo, vivo iludida, buscando um dia a paz de repente se assentar. A escrita já não faz mais efeito se não for para informar uma experiência depois de ler tantos livros e artigos e mostrar que sei para aprovação de quem lê, mesmo sem saber de nada. Estou cansada nesta etapa e receosa sobre as palavras já não mais me salvarem. Estou com muita saudade da praia, do som das ondas, do chão santo de um palco de teatro. Se a reza não tem lugar, como andar rezando? Se eu disser que hoje não caminho pelas pedras, será que é possível acreditar na minha palavra amanhã? Aguardo o esquecimento para apoiar as angústias dos traumas da vida. Aguardo o sol na minha cara impedindo que meus olhos fechem porque nasceu o dia. O dia passando com o cão, com o trabalho, com a higiene, com o urubu no meio do caminho abrindo suas asas pousado no chão da calçada querendo dizer algo que eu entendo como um comando para eu me afastar. Nesse andar para lá e para cá decidindo cada afastamento e cada aproximação desgasta a vida que duvida enquanto cambaleia. A sensação é de não ter forças para aguentar os raios dos próximos dias, mas os exames dizem que vou bem, sem tumores, com o sangue bom, lúcida e só. Por mais que o vento sopre, balance as folhas na sassanha, por mais que cantar desapavore e eu durma, a vida é incurável. Por mais que a boca enlargueça em um sorriso, os dentes mentem, escuros e quebradiços. As queixas engolidas por serem apenas queixas, emperram pedidos de companhia, pois cada um tem a sua vida e, se não se aproximam diariamente, talvez temam a explosão do raciocínio que se acha lógico ou a precariedade da capacidade de se relacionar.