segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O problema dos outros e salvar o mundo

 Não posso, de não poder, não ter poder mesmo. O cão farejou e enquanto isso eu senti um cheiro de ferida. Já sentiu cheiro de ferida aberta? Eu tenho que prestar muita atenção ao que o cão fareja pois ele pode comer o que não deve. As ruas cheias de punhados de ração, de ossos assados ou cozidos de galinhas ou de bois, restos de comidas diversas que depositam nas ruas do centro para os famintos humanos e animais. Passarinhos comem, cães de rua comem, moradores de rua comem. 

O cheiro de ferida se confirmou numa simples e breve farejada. Também é possível sentir quando há olhares direcionados a você. Levantei minha cabeça que ainda mirava o que o cão farejava, mas nem ele mesmo parecia ter encontrado algo, apenas buscava. Parecia uma cena de filme de ciborgues, o gato deitado em posição de relaxamento virou a sua cabeça em minha direção e o cheiro de ferida ganhou nome. Sua cabeça aberta, um olho seu nem existia, virou pra me mirar. Ele estava dentro de um estabelecimento comercial, talvez nem soubesse dele lá... Parecia pleno tomando o seu banho de sol que surgiu enquanto o dia chuvoso estiava.

Sua cabeça aberta e o cheiro da ferida poderiam ter me comovido e, comovida, eu mudaria todo o meu dia pra tentar devolver a saúde daquele bicho, gastaria rios de dinheiro com a sua recuperação. Mas algo me protegeu dessa comoção. Não se se pela plenitude do seu olhar, não sei se por já ter trabalhado uma manhã inteira escutando as angústias humanas, ou pela química ingerida todos os dias para me ajudar a dar conta do que sinto, ou por talvez eu ter encontrado o entendimento de que na estrada dessa vida eu posso pouco e preciso sentir que meu poder é limitado. 

O gato não miava, não arfava, não gemia. Ele apenas sentiu a minha aproximação e virou a cabeça quebrada pra me olhar. Parecia resignado com seu cérebro à mostra. Nem mosquitos o rodeava. Eu passo por ali todos os dias e não o conhecia mas poderia ser um dos gatos que eu vejo todos os dias e todos os dias todos olham pra mim. Procurei um pouco da minha piedade, um minuto antes um preto velho se arrastava pela rua e pediu meu cão pra ele caso eu desejasse me desfazer. Respondi que não. 

Se eu não tivesse o cão, pegaria aquele gato acidentado? E se o gato não deixasse eu prestar a minha piedade? O meu poder se encerra diante do poder do outro. Assim, ninguém tem muito poder nessa estrada, onde o Real é quem pode mais e o que me cabe é dar conta dele sem potencializar tanto a minha sensibilidade. Uma sensação desagradável barrar a sensibilidade, mas possível.

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