segunda-feira, 9 de março de 2015

DEPOIS DA MULHER NUA



                                                                                                                    
Em meio ao início do carnaval, vou subindo a ladeira na cidade de Salvador e chego no ACASAS*, edição de 7 de fevereiro de 2015, na Avenida Cardeal da Silva. Fui convidada por Nirlyn Seijas. Já na recepção, ainda no térreo, a informação: está acontecendo um cinema e logo após as performances – a de Nirlyn é a primeira. Subo vários lanços de escada até chegar ao terraço, local do evento. Ao adentrar, miro a televisão, duas cadeiras, escassas pessoas na sala da casa. Puxo uma cadeira em minha direção ao mesmo tempo em que me pergunto “será que estou cometendo alguma garfe em ter feito uso do cenário?”. É uma casa, há cadeiras, portanto, cadeiras são para sentar e placas de “proibido sentar” são inexistentes. Eu sento. Assisto a “Olho A’Dentro”, de Camila Camila. O som que serve ao vídeo sai da própria televisão e eu tenho dificuldade em escutar o texto das ciganas. Escuto um dialeto. Deixo-me escutar. Isso é muito interessante. Surgem as meninas ciganas e ao final do documentário, uma entrevista arrumando facilmente a mensagem.
Tem início o trabalho de Nirlyn, “Mujerzuela”, trazendo-me à poesia.
Ora flutua ora pendura. O vento sopra nas curvas dos movimentos e traz a platéia. Eis a pele alva, cabelos desembaraçados e negros, no peitoril da varanda. Tem janela e espreita edificações e zumbidos. Tem buraco e ele suga. A primeira queda. Pausa. As próximas pisadas. Os pés de um corpo despido tateiam caminhos nas superfícies – o chão é o teto, a parede é o chão, o chão é a parede. Tem porta e o entardecer também trabalha. Contorcionismo. Tremor. Respiração. A noite. Louca. Quer sair do chão. Desencostar das paredes. Fincar o chão. Ficar em pé. A queda. Aquela que dá ao corpo solidão as paredes desse corpo alucinação.
Em seguida, Lirya Moraes. A dança tem início na sala de entrada, onde se finaliza a performance de Nirlyn. De braços abertos (talvez uma bola gigante imaginária), pernas em desequilíbrio, vai se retirando do ambiente, andando de costas. No caminho, cumprimenta pessoas com sorriso e abraço, o que me deixou um tanto confusa – todos estão dançando?! O meu incipiente conhecimento no mundo da dança me aconselha a continuar observando, vai que daqui a pouco sou eu no meio dessa dança! Ela então segue para a área descoberta do terraço, onde a bola gigante ainda se faz presente e as pernas continuam bambas. Bate os pés no chão. Pernas bambas. Não tão bambas. Agora a coreografia me remete um Xirê, a dança no candomblé, ausente do sentimento do Rum*. Surgem palavras. Algo do tipo “essa casa tem um corredor... aqui é aberto...”. A minha psicanálise nessa hora carece de associações; o que escuto é uma desconexão entre o movimento e as palavras. Desconexão das palavras. Eis que espetos são lançados da churrasqueira! Ela os bate no chão. Fala esbravejante com uma suposta “dona da casa”, dirigindo-se a uma mulher em pé. Depois das lanças, um registro de chuveiro tenta ser aberto. Pede ajuda. Uma pessoa que assiste à cena faz funcionar a queda da água. Ela se banha. Umedece o rosto, encharca a roupa. Depois vai ao chão e lá surge um prato de barro, uma cumbuca, cheia de doces, os quais ela vai arremessando aos presentes em movimentos amenos, direcionando o bombom de chocolate para cada um. Os arremessos se intensificam abruptamente e eu observo com ressalvas: isso pode machucar alguém. Encontro-me encostada numa mureta próxima à porta do aposento. Então, ela vem em minha direção e lança o bombom no meu rosto. Eu desvio o suficiente para não atingir os meus óculos. A maçã recebe a pancada, deixando a dor, enquanto ela passa por mim gritando “é assim que se trata a visita?”. Sinto em meu corpo as consequências da descarga de adrenalina – taquicardia, calor e o latejar da maçã. Um convite à performar? Logo em seguida recebo a notícia da minha amiga que me acompanha na oportunidade – ela também foi atingida, no braço, e doeu.
O desejo de ir embora do evento foi imediato. Imediata também a elaboração. Afinal, sofrer uma agressão de maneira gratuita e totalmente inadvertida demanda uma análise. Fui fazendo as bordas: onde eu estou? Dentro de uma casa. Por que aqui estou? Há um evento artístico acontecendo. E se eu estivesse no meio da rua? Se eu estivesse no meio da rua, da cidade de Salvador, eu estaria participando do evento (assim como me dispus ao Pra Te Ver Melhor, do Coletivo Construções Compartilhadas*, encenado por Eduardo Rosa, Carlos Santana e Nirlyn Seijas em outubro de 2014 no centro da cidade, dentro da programação da 10ª Mostra Sesc de Artes – Aldeia Pelourinho) e com minhas “orelhas de pinscher” aliadas à escuta flutuante, atenta ao movimento do real dessa cidade das balas (bombons!) perdidas.
Agradeci à Nirlyn por me conduzir à experiência nesse dia. Entendi o mau gosto da vivência da apresentação de Lirya. Desci todos os lanços da escada e, da ladeira com vista para a Paciência do Rio Vermelho, dediquei-me as minhas domésticas reminiscências a me perguntar se é assim que se trata a visita.  





*ACASAS, plataforma de apresentações artísticas em casas, desde 2012 investigando as possibilidades artísticas no cotidiano espaço de uma casa. (Fonte: Facebook, 2014)
* O Rum é o maior atabaque utilizado no candomblé para dobrar ou repicar o toque para que não fique repetitivo.