sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Sexta-feira de manhã cedo no Rio Vermelho

É preciso ficar em silêncio e apenas agir. Quem me benzeu agora na praia disse pra continuar os planos, mesmo que eu vá me arrastando, chegarei lá. Como vou ficar em silêncio total eu vou aprender. Se encontro Carlos na balaustrada da praia mais bonita da cidade e ele me pede pra tocar e cantar. Isso nunca poderei negar a Carlos.Ele me fez cantar mais um vez na noite e eu nunca esqueci de tudo dessa noite. Ele me agradece dizendo que eu o enxergo e pede música. No início de tudo ele me dá bom dia e aperta a minha mão. Depois diz que eu faço muitas perguntas e propõe recomeçar pelo bom dia.Tocando em frente é a primeira canção a mim dedicada. Ovelha negra, alô alô marciano. Essas são a minha cara, ele quem diz.
Então recebo seu violão surrado e um tanto desafinado em meus braços
Ele diz que é assim mesmo, mesmo desafinado, pra eu tocar
Vou de sangue latino e ele bate palmas, fala as frases
Continuo do poutpourri à flor da pele
As pessoas passam e querem registrar a cena linda, elas dizem
Os olhos de Carlos quando me fitam cantando e tocando sempre estão cheios lágrimas contidas
Devolvo-lhe o violão e ele toca a paz
Essa eu sei!
Ele me devolve o instrumento, eu erro as notas e ele me faz uma nova proposta de começar tudo de novo e aponta pra o mar
Só a guerra faz o amor em paz
A chuva cai mansa refrescando a manhã debaixo da amendoeira frondosa que nos protege
Carlos pede que eu toque e cante mais uma
Por onde andei começa
Ele vai virando o seu corpo sentado até ficar de costas pra mim e percebo que chora
Chora, chora, e levanta da balaustrada, dando passos pra longe de mim
Volta, passa por mim chorando
Volta, senta novamente na minha frente, olha nos meus olhos, seus olhos derramando muitas águas
Sorri
Bate palmas
Finalizo a canção
Ganho o seu abraço
E ele declara ser meu irmão

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Lagarta no ar

Eu vi
Uma lagarta
Verde
Pendurada
No ar
Contorcendo o corpo
Presa
No ar
Olhei pra cima
Nem planta
Nada
O ceu
Lagarta no ar
Eu juro
Eu vi
Quase ninguém viu

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Mapa

Se eu não sou só uma
Se estou em várias quando elas querem vir
São chamadas muitas vezes
Aparecem monstras com
Transtorno de pânico
Transtorno misto ansioso e depressivo
Episódios depressivos
Transtorno depressivo recorrente
Estado de estresse pós-traumático
Transtorno de adaptação
Elas escarnam cancros
E ficam de olho na ferida
Como um bicho acuado
Que já viu muita gente matar muita gente
Elas aparecem em um mapa
Os olhos têm motivos pra se debruçarem nesse desenho
São códigos emburrecidos
Ela causa no mundo com todas elas
Mexe com você
Surgem até tremores e sua pressão arterial sobe quase te matando
É mentira?
É tudo mentira sobre tantas elas
As cúmplices
As oferecidas
As putas
As quengas
As artistas
As loucas
As desequilibradas
As apaixonadas
As desleixadas
As vadias
As vagabundas
As milf
As desencantadas
As necessitadas
As mal educadas
As cara dura
As Maria-rapaz
As monas
As minas
As mães
As meninas

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Sentido iluminado

Você tem sorte de alguém olhar pra você assim
Ou falta de sorte
Porque sou eu quem te vê com meus olhos
Meus olhos de olhar assim
Boa sorte
A sorte que você deseja ter

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Bombafunk

Menina na rua
Mulher na esquina
Atrás do balcão
Ela se domina
Mete o carão
Vai até o chão
Te chamam menina
Sem saberem
Menina velha
Ela foi um plano
Quase dá errado
Um estudo na língua
Menina...

Menina se domina
Mete o carão
Vai até o chão
Menina se domina
Meta a bala
Mande ver
Segura na agulha
Menina veneno
Disco compacto
Vai!

Menina se domina
Chama outra menina
Mais uma menina
No paredão
Mete o carão
Vai até o chão
Quem não te conhece
Menina
Não te vê
Canta assim
Uma lágrima pequena assim
Domina sim

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Parada e ereta. Não, não estou parada. Estou respirando, embora à noite não consiga fotossintetizar. As outras ao entorno estão inclinadas, curvadas. Elas são desse jeito mesmo. Assim elas procuram a luz, envergando-se. Talvez de minha parte nasça uma flor rosa. Essa flor bem parece comigo mas nasce rosa enquanto eu busco a luz do sol assim quieta respirando. Outra parte de mim vai no fundo desta terra muitas vezes seca mas molhada a tempo suficiente de eu não murchar ou morrer. Sobrevivo com pouca água, confesso. Daqui estou de frente pra um outro ser cuja água sai das duas bolas pequenas e bem próximas que se mexem e também se contraem, fecham e abrem. Veja! Lá vem o dia! O azul do céu! Um passarinho piando baixinho. A luz me faz viver mais até chegar o dia de me tornar apenas uma folha seca no chão.
Um dia essa agonia passará
Porque hoje em dia olhar nos olhos do amigo se perde o efeito da amizade
Ao lado há um macho fingindo ser anti machista
Do outro lado uma fêmea fingindo ser anti-racista
No meio está uma mulher preta já muito debilitada
Um cão doente morre matado pela própria matilha
O ser humano era pra agir diferente
Ele mistura químicas
Ele pensa em cortar o cabelo
Ele só não pode escapar
De seres humanos ao lado
Aí jaz o medo de viver e a criação da coragem
Diga "morra!"
E uma multidão surge ao redor
Para lhe matar
Olhando pros seus olhos
Rindo (por dentro) da sua cara
Um homem branco
Uma mulher branca
Que o mundo se acabe
A civilização já está acabada desde que nasceu
A palavra representa o que não está ali
A coisa morta



Quando eu saio é atrás de música
Quando eu saio ela vem também me procurar
Quando não nos encontramos
Nunca

sábado, 18 de janeiro de 2020

Menstruar
Deixem a mulher
Com o pau ereto
Menstruar
Contrações sem contenções
Deixem a mulher
Menstruar
Tinta sem pintura
Deixem a mulher
Chorar suas causas
Acolham a mulher
Abracem a mulher
Sintonizem com a mulher
Menstruando
Deixem a mulher
Aderir a si mesma
Por todos os cantos

Se olhar pro desprazer saberá conduzir
Só falo dela
Falo
Ninguém aí?
Você, menino
Tem pênis?
Menina tem pênis.
Se olhar pro desprazer há de ver
Desenlace
Lance
Além do alcance
Na beira
Segura na beira!
Pra não cair
Vá além do princípio
Veja
A coisa
Saiu de lá
Que loucura?
A coisa sumiu de lá
E agora?
Busca
Se olhar pro desprazer
Pode ficar cego por instantes
A cegueira é a mentira
Pra viver em paz

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

SOBRE CÉREBRO E BUNDA

Você ficou doente por minhas palavras. Eu queria que todo ser humano antes de qualquer atitude enxergasse a sua condição de animal que foi civilizado. Apenas trabalhasse para a manutenção da vida. Sedução, intenção de amizade, amor, paixão, nada disso existe. Existe trabalho entre os homens na terra. A morte é uma celebração. Celebrar a vida é insignificante.  Pra quê querer saber notícias do outro se o seu labor está distante do labor do outro? Nada lhe renderá. Meu cérebro é imprestável, adoece. Minha bunda é descartável, envelhece. Há tantas pessoas especiais com cérebros fenomenais e bundas extraordinárias.Há tantas pessoas  amigas. Há tantas pessoas silenciosas. O mundo está lotado de pessoas. Eu fiquei doente por suas atitudes.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Vou inventar um dia....
O dia da folha de goiabeira que eu amo cheirar!
Meu deus do ceu
já sentiu o cheiro da filha de goiabeira?
Lagarta pintada tem no verde das folhas
As futuras borboletas
Passarinha bica uma goiaba e a moça se irrita
Quer goiaba sem picada de passarinho
Ela enriquece de goiaba
E eu peço encarecidamente alguns galhos pra eu cheirar
Ficar cheirando
Até as folhas seracarem
De tanto eu cheirar

sábado, 11 de janeiro de 2020

Chamaria

O estado de paixão não sustenta nada. Ele acaba com tudo. Vê-lo passar e ver o que fica é o melhor. E a atração dos corpos? E a atração intelectual? Podem ser confundidas com o estado de paixão. Então chamaria de paixão desejar estar perto do intelecto do outro. Não. Chamaria de paixão desejar o encaixe do corpo em determinado outro corpo. Não. Chamaria de obsessão desejar? Também não. Chamaria apenas. Sem chama, nem uma coisa nem outra, nem o que ficaria depois de tudo acabado.

"O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar"

Eis o exercício em viver em liberdade. As pedras também amam. Amam as intempéries -  parecem saber que basta vê-las passar.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

O pânico faz alguém paralisar ou correr. O instinto é o de sobrevivência. A reação à situação de ameaça à vida é inusitada. Dois ladrões em Salvador anunciaram os seus ofícios a um CASAL QUE SE AMAVA na turística Itapuã. Nas imediações da Sereia. A décima segunda delegacia de polícia parece estar logo ali do outro lado da rua. Dois ladrões mandam o homem do casal ir buscar os pertences dele para doar-lhes senão acabarão com a vida do casal. O homem obedece, talvez pense que obedecendo ele possa salvar a todos. A mulher fica com os ladrões como garantia da entrega dos pertences. Um ladrão estupra a mulher na ausência do homem. O estuprador se assusta com a viatura e obriga a mulher correr. A mulher tem crise de asma e ambos páram e recebem água de um estabelecimento. O estuprador abandona a mulher que pede socorro em seguida. Ninguém faz nada. Ela consegue retornar ao hotel quando alguém faz.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Agorinha eu vi uma vassoura varrendo as flores de jambo. Você já comeu flores de jambo? Eu já. Deliciosas como o jambo. A flor antecede o gosto do fruto no jambeiro. Nele há sempre lagartas de fogo. Na mangueira também, mas nunca comi e nem reparei nas flores da mangueira. Sei que lagartas de fogo podem ser muito verdes. Eu já me queimei quando segurei no galho.  O ardor doloroso percorre muitas horas. Irradia pro braço a sensação. Depois passa. O fim da dor é de repente. Quando se tenta olhar pra ela, sumiu.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Texto a ser mexido

Pode dizer que é bonito? Eu sei quase nada do que pode ou não pode. Mexe com tudo, todos os sentidos. Minha pele sente e arrepia pelo som que meus ouvidos recebem nas cores das vestimentas sutilmente coloridas sobre o predominante branco. Branco no chão do salão. Branco nas paredes. Uma branca ao meu lado um pouco atrás de mim. Quero saber dançar aquelas danças por todo o salão. Quero saber cantar aquelas músicas bem alto no coro do salão. Quero a voz daquela ekede no salão. Será que eu posso dizer pra ela continuar cantando? Eu pedi pra ela continuar cantando no salão. Aquela mulher preta e muito magra. Pedi na frente do pai da casa porque ele estava bem na frente nessa hora. Lágrimas engolidas com tudo do salão mais meus pensamentos indo longe e trazidos pra dentro do salão. Quando eu coloquei ali o que me afligia foi sendo possível tratar daquela imagem carregada de afeto na memória. Eu descarreguei no silêncio do meu salão. Eu rezei de novo. Sorri de simples belezas de pessoas tão pretas quanto eu ali dançando com toda a cabeça entregue ao fluxo do movimento.