Vou falar da instituição
psicanalítica. Falar sobre o que eu vivi nessa instituição chamada Confraria
dos Saberes, fundada no bairro de Ondina em Salvador no ano de 2006 pelos
psicanalistas Maria da Conceição Nobre e
Eduardo Sande, egressos do Colégio de Psicanálise da Bahia. Trata-se de uma composição
de análise institucional sobre a formação do psicanalista no Brasil..
De que vale um diploma de
formação psicanalítica e a exigência do nível superior para o exercício do
ofício?
A biografia de uma das mais importantes
psicanalistas pós-freudianas, Melanie Klein (1882-1960), informa que ela “chegou a estudar arte e história na
Universidade de Viena, mas não chegou a graduar-se”. Fez análise com
Ferenczi, discípulo direto de Freud e fundou sua escola de psicanalise em
Londres. Caminhando no que eu tenho construído como a minha linha freudiana do
tempo aparece, após Klein, o psicanalista argentino com formação kleiniana, Emilio
Rodrigué. Residindo na Bahia, escreveu a biografia de Freud em três volumes
publicada aqui no Brasil pela editora Escuta em 1995 – Sigmund Freud, O Século
da Psicanálise (1895-1995), contribuindo à psicanalise local na formação de
muitos psicanalistas, tal como Maria da Conceição Nobre, sua analisanda e minha
analista.
Eu, graduanda em psicologia, sou
uma psicanalista?
A história da psicanalise
apresenta na biografia de importantes psicanalistas, o rompimento com a
instituição psicanalítica, aliado a fatores que geram esse rompimento – a repetição
destes casos merece ser destacada. Muitas vezes é um rompimento no campo teórico, como
assistimos na famosa história de Freud e Jung ou de Freud e Ferenczi, o
primeiro deserdado e este último diagnosticado como psicótico. Eu costumo dizer
que Jung é um psicanalista e que Ferenczi, além de psicanalista é o verdadeiro
príncipe herdeiro. Os mais
contemporâneos Jacques Lacan e Françoise Dolto também não escaparam da
repetição, ambos rejeitados pela IPA (International Psychoanalytical Association).
O caminho na psicanálise é de
cada um.
A instituição psicanalítica é um agrupamento
de psicanalistas, que “estudam e discutem
casos clínicos, pensam sobre a teoria, produzem trabalhos clínicos e teóricos e
vivem no divã o método que pretendem utilizar” (SALEME, 2008, p. 103), formando
novos psicanalistas - pessoas em análise que se dispõem a estudar a teoria e
desenvolver a prática. Freud diz que um
psicanalista é aquele que faz análise e estuda a teoria. Eu também costumo dizer:
a teoria é o chão da análise, é ela quem dá os calços para que o analisando se
reconheça em seu processo, cujo trabalho consiste na flutuação do discurso
atraindo novos significantes para a alteração do caminho de desejo do sujeito. Concordo
com SALEME (2008, p.119): “O analista só pode compreender os conceitos
psicanalíticos se puder reconhecê-los em si próprios”. Portanto o saber da
teoria psicanalítica está intrinsicamente aliado à análise, e não há teoria
psicanalítica sem a clínica psicanalítica.
No Brasil. hoje existem instituições
psicanalíticas emitindo diploma de formação de psicanalista. Um papel assinado
por uma instituição psicanalítica reconhecendo a existência de um psicanalista
é o que faz um psicanalista?
Um
psicanalista no Brasil precisa somente ter nível superior para exercer o
ofício, conforme a Classificação Brasileira de Ocupações, emitida pelo Ministério
do Trabalho (2010). O Projeto de Lei Nº 3.944/2000, de autoria de Eber Silva, versa
em seu capítulo IV que quem fiscalizará e registrará as entidades serão os Conselhos
Federal e Estadual de Medicina. O Projeto de Lei foi rejeitado por unanimidade
pela Comissão de Seguridade Social e Família nesse mesmo ano e está arquivado.
O artigo de BALEEIRO apresenta um apanhado da mobilização nacional, desvelando
que há um interesse da Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (uma
sociedade civil de direito privado) em ser pioneira na regulamentação da
psicanálise. Segundo a autora:
“De qualquer maneira os grupos que atuam
em psicanálise começaram a se incomodar.
Nos parece que o projeto retira ursos
das cavernas, mexe com vaidades, une facções,
promove discussões.” (BALEEIRO, 2001)
Eu, diplomada em nível médio
profissionalizante desde 2000, sou uma psicanalista.
Passei a ser membro da Confraria
dos Saberes em 2006. Fiz análise com Maria da Conceição Nobre e por ela fui
convidada a ingressar no grupo. Leituras, roda de discussões, eventos
filosóficos, estatuto de formação de psicanalise, atendimentos, testagens de
inovações técnicas tal qual dispositivo nomeado como “mundofreudiano”, apresentação
de casos clínicos, coordenação de grupos de estudos – fui instituída
psicanalista por mim e pelos meus pares dentro de uma organização.
Porém a normopatia esteve lá. Este
termo foi encontrado em minha leitura do livro de Maria Helena Saleme, cujo
título é “a normopatia na formação do analista”, publicado em São Paulo pela
editora Escuta, em 2008, com prefácio de Joel Birman. Ao trazer sobre as repetições sintomáticas
dentro da instituição psicanalítica, esclareceu-me sobre os entraves vividos na
minha formação até a minha saída da organização em 2015, com condução às reflexões
sobre a instituição – a hipótese da autora “é
de que as formações psicanalíticas inserem o analista em formação em uma
montagem perversa que transforma a criatividade em normopatia” (p.105)
Quando da criatividade, não
atende mais à instituição o formando. A autora traz que a alteridade é posta de
lado dentro da instituição pelo jogo de poder, impedindo a criação, o que me
leva a supor que isso se refere não somente ao “enrijecimento da teoria psicanalítica e o advento das instituições
psicanalíticas” (p.103), mas também a questões de extimidade (conteúdos do setting analítico que vazam para o
ambiente externo) e contratransferência (manifestação do inconsciente na
análise) na instituição, haja vista que os psicanalistas em formação geralmente
são atendidos por psicanalistas do próprio grupo. Então há um convívio. Eu o
vivi até por sete anos dentro da instituição.
“A psicanálise não é uma questão de ensino e sim de ‘transmissão’. A
transmissão da psicanálise se passa pela identificação com a postura ética de
outros analistas. A teoria está escrita, alguém pode conhecer todos os livros
escritos sobre o assunto e não será, por isso, um psicanalista. A psicanálise
possui uma ética e uma liberdade de pensar que se contamina e é transmitida na
convivência com o psicanalista quando ele mostra como ouve e como se posiciona
frente às questões. A transmissão se dá no contágio. É por isso que o aumento
de regulamentos e de critérios burocráticos não traz garantia nenhuma. Ao contrário
(...) transmite algo diverso do que se poderia chamar psicanálise.” (SALEME, 2008, p. 103)
Atravessar as questões de uma
instituição psicanalítica requer um debruçamento sobre o que é um psicanalista,
passando pelo entendimento de que um psicanalista se faz psicanalista no divã, no
encontro com o seu desejo, manifestando a sua singularidade, a sua arte, a sua
política, perfazendo caminho pelo chão da teoria freudiana.
“Justamente porque a falta-a-ser, que coloca o sujeito em movimento de
transformação no decurso da própria análise, muito provavelmente, o colocará
assumindo possíveis autorias reflexivas e técnicas a partir de suas flutuações,
abrindo “chãos” tão singulares quanto seu próprio percurso como analisante, ou
seja, novas perspectivas teóricas e testagens práticas, como ocorreu com os já
citados Jung e Ferenczi. Sendo assim, a psicanálise estaria muito mais para
apoiar a falta-a-ser do sujeito, pela via de sua criatividade, do que seu
encerramento, comum aos processos institucionalizantes, os quais tantas vezes
tem ocorrido, a efeito do enrijecimento normopático.” (EDUARDO ROSA, 2016)1
Entendo que essa análise coloca a
própria psicanálise em questão.
1 Eduardo Augusto Rosa
Santana, psicanalista e artista da dança, contemporâneo na formação
psicanalítica na Confraria dos Saberes, doutorando em Artes Cênicas pela Universidade
Federal da Bahia/Middlesex University London, com a tese sobre o surgimento do
Movimento Atensional, em correspondência via aplicativo de mensagem instantânea
em 27/11/2016.
Referências:
SALEME, Maria Helena. A normopatia na formação do analista. São
Paulo: Escuta, 2008.
FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: IMAGO, 2006.
BRASIL, Ministério do Trabalho e
Emprego. Classificação Brasileira de
Ocupações: CBP, 3ª ed. Brasília: MET, SPPE, 2010.
BALEEIRO, Maria Clarice. Sobre a regulamentação da psicanálise.
Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia,
novembro de 2001.
Biografia de Melanie Klein
encontrada em: http://febrapsi.org.br/biografias/melanie-klein/