quinta-feira, 23 de maio de 2019

O ÚLTIMO TEXTO DO CAPÍTULO


- É, Babá, parece que é só isso, muito amor e música. Isso é muita coisa dentro dos nossos terreiros. Quando meus pés buscam os seus pés e logo os sente fugir desse toque, é porque não tem muita coisa a se esperar, tampouco a se fazer. Aterrar em fogo sendo água é missão impossível. Minha mente escancara só um pouco tentando viver a liberdade de apenas existir em nossos breves encontros. Eu sempre penso que é o último.

- Isso é psicológico.

- Não, não o é. Sendo. Há uma pecinha lá dentro de mim que está inchada em demasia, é fato. No corpo.

- Sinto dores nas costas.

- Eu também sinto. Pode ir, Babá. Nos contatos que faço, o seu nome pode já ser alterado

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Há choro antes da música começar
Muitas lágrimas pelos buracos da cabeça
Lá por dentro goteja nos canais
De tanto pinga pinga sem parar antes da música começar
Se é olhado
Deus o livre e guarde
Sendo choro
Atira berros
Cava buracos
Pede mais canais pra passar
Deita de ponta cabeça
Leva um susto quando o corpo
quase se entrega
E se abre
E pede remédio
Pra suportar a dor
E cantar

domingo, 19 de maio de 2019

Quando o outro paga pra ver a sua invenção, a invenção já não é mais sua. Quando o outro vem e lhe informa dos acontecimentos da própria vida, essas coisas trágicas, e você, preocupado, depois de alguns dias, pergunta como vai a vida do outro e ele não responde, é bom que você morra pra esse outro. Quando eu morrer pra vocês, observem, morrerão também os diálogos inacabados por opção. Morrerá a ignorância de uma tentativa de diálogo. Morrerá a pessoa a quem você só se comunica quando quer. Quer mais atenção. Quero mais atenção. Sua vida não comporta a vida minha. Nem trechos dela. Por quê? Se até lá trechos da vida são ignorados, pra que alimentar a vida? Morre na estrada, estirado, até na linha do trem do caminho de santo amaro. Aproveitem e façam um samba e subam a ladeira batendo palmas. Que ladeira? A ladeira onde os corpos são engavetados. Se o meu corpo nem servir pra pesquisa, pra quê meu corpo? Nessa noite o corpo está dirigindo em alta velocidade, sozinho com a máquina com quem decidiu se relacionar nessa noite. É uma reta a caminho de casa. É uma reta e logo a primeira à esquerda. Antes dessa entrada tudo se transforma em breu. Meus olhos estão completamente cegados. Meus ouvidos escutam, não há carros atrás tampouco à frente. Os pés no acelerador, é impossível encontrar a entrada à esquerda só com ouvidos e pés no acelerador. Segue em frente a criatura cega e mais adiante a luz dos farois e algumas pessoas e carros na rua desconhecida, ainda naquela reta. O caminho está perdido, logo a decisão é fazer o retorno e continuar seguindo direto, acreditando que a rua estará lá. Procura o pedal do freio e ele some. Ultrapassa carros mas se há um pedestre ele será matado, porque freio eu já perdi.

sábado, 18 de maio de 2019

A mania se apresenta em  um estado de profunda irritação. O grito e o choro são, pela pouca consciência do corpo, mantidos em retenção. Qualquer som mas nem todo som atiça o atacamento, qualquer palavra, qualquer presença. Qualquer mas nem toda presença. Ainda que calmamente alguém indague o motivo do enclausuramento na mania, ainda que eu lhe diga que está na voz que canta muito mal, a certeza do não lugar da coisa da mania atravessa a voz. Convive com o medo extremo e presenteia com o corpo se revirando durante todas as horas de estio num colchão. Não há amigos. Nem cão. Nada salva um corpo na mania. Se esse nome não lhe fosse dado, os desastres continuariam acontecendo sem nome.

domingo, 12 de maio de 2019

Ontem
Um dia após o outro
No silêncio do som
Onde tem música
Você se esvai

Amanhã
Nem uma palavra
No som do silêncio
Um coração
Pulsante
(Porque tem que pulsar)
Nem uma mensagem
No dia que virá

Hoje
Essa é a prova da vida a ser vivida
O silêncio que precisa
O som
Que você faz
Atravessando o inquieto
Coração
No vazio
Na solidão da noite
Depois do enlace
Em peles suadas
Cansadas
De tanto se dar

O fim não teve começo
A vida dissolve as afeições
E as palavras chegam ao fim.
Ao esvaziamento
Ao enlouquecimento

Suplico

Na condução da pélvis
Na consciência da pélvis
Reconfigura-se a libido

Imploro

À próxima ação
À ruptura constituinte

Escória

Embuste

Ataque

Agressão

Desumanidade

Acabem com isso
Alterem isso
Salvem nossas criancinhas

Detenham-se
Contenham-se
Trabalhem-se

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Agora tudo é água
Uma onda sem fim
Bem na crista
Faz-se um espelho
Corpo curvado
Em equilíbrio
Nada poderá salvar
Um homem na crista
De uma onda
Em cima da tábua
Cheio de adrenalina

Entregue a Tânatos

Ele chora na areia
Ajoelha e reza
O mar chama todo dia
Maré cheia
Maré vazia
O mar chama todo dia
Maré cheia
Maré vazia
Todo dia
Chama
Mar

segunda-feira, 6 de maio de 2019


Sou aquele gato se batendo entre o meio fio e o asfalto enquanto eu passo dentro de um carro e digo pra mim mesma pra não me abalar com o gato se batendo. O que eu posso fazer pra salvar a vida dele se estou na pista do meio entre tantos carros a setenta quilômetros por hora e devo passar o crachá na catraca até às nove horas? Aumento o som. Bem alto som. Engulo o choro e mio baixinho o meu grunhido de não poder fazer nada pelo gato a se debater no caminho. Eu me debato toda, todo dia, gatinho.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

De repente o mundo se enche de amor. Parece um elástico amoroso. A distância mostra a prova do amor. Onde está o seu apoio? Naquilo que lhe faz bem, eu presumo. Aí está o mundo cheio de amor. Sem amor, o mundo não existe. É tudo uma grande invenção humana.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

CAMISOLA VOLTA AO MUNDO ROSA CHOQUE

A porta do terreiro está aberta e exala o cheiro de alfazema e linho.

- Sinto o seu cheiro daqui. Sinto você aqui perto de mim.. Feche a porta, volto já. Enquanto isso, vamos aumentar o fogo.

- Apague tudo, Babá. Minha carne sem sua saliva é porta fechada. Minha cabeça está aberta para o real invadir. Tanto  faz a clivagem. Se tudo é música, eu te espero com prazer depois de tantos corações.