quarta-feira, 28 de março de 2012

Eu não consigo ficar em silêncio

Nem quando preciso

meu corpo fala

Minha mente às vezes até grita

E eu choro

também fico doente

Demente

Minha falta fala por mim

Durmo, então meu sonho mexe,

briga, angustia, trabalha

Coisas que a boca não sabe dizer

Desperto porque, de repente, uma mosca me acorda

Continuo a dizer

Como é difícil calar

Como é difícil amar

Talvez tenha preguiça de viver


Palpitação

Música, poesia

Cinema

Ausento-me com a minha zoada

Calada teimo em dizer

Até a agonia passar

A palavra certa encontrar

o som da minha voz com o exercício da minha língua

Ecoar

E o meu peito parar de doer

domingo, 11 de março de 2012

Quarto de Aldiná

Às vezes eu visito o quarto escuro de Aldiná. Faço o percurso até o bairro da Saúde, chego à porta do casarão e crio coragem para subir as escadas. É só uma visita, embora o lugar tenha aparência sombria. Um casarão antigo, escadarias de madeira, piso bambeando. O assoalho está velho e tenho a impressão de que, a qualquer momento, o chão irá desmoronar a cada passo meu. Os móveis todos fora dos seus lugares convencionais, espanto-me com a geladeira na sala.

E, como vai Aldiná? Ela mora nessa casa e não veio me receber? Alguém faz sinal com os olhos e direcionando a cabeça aponta o quarto onde ela está. Vou em passos muito lentos, ouvindo o ranger da madeira, até à porta do quarto de Aldiná. Ninguém sabe por que, mas às vezes ela entra no seu aposento e de lá demora a sair. Como nunca a vi nesse estado de enclausuramento, curiosamente aproximo os meus ouvidos e bato na porta, aguardando uma permissão para entrar. Alguém avisa de lá da sala que eu posso prosseguir. Abro vagarosamente e não enxergo prontamente qualquer cena. As vistas procuram a incidência de luz e alguma coisa que ela possa formatar. Assim vejo ao fundo uma cama encostada na parede e Aldiná sentada com os lençóis sobre suas pernas. Sem expressão, sem emoção. Sem choro, sem queixas, nem agressão. Nem um sorriso para a visita. Cabelos crespos despenteados. Eu ouço novamente: é assim, ela fica assim e logo resolve sair do quarto.

Meus encontros com Aldiná foram todos na casa de meus avós paternos no bairro das Sete Portas. Ela sorria timidamente para mim e depois ia cuidar da limpeza da cozinha. Quando não estava em total silêncio, resmungava em tom baixo e consigo mesma palavras que ninguém ouvia. Não opinava, não gargalhava, não cantava, não dançava. Usava a torneira da pia de tal forma que a água saía como um fio e assim o tempo para a lavagem das louças era lento. Quando ia embora ao final da tarde, levava o lixo num saco. Minha avó a ocupava, eu penso, porque ela nunca se afastou de lá. Aliás, isso só ocorreu quando por impossibilidade devido ao Alzheimer, minha avó deixou a sua própria casa para morar com um dos filhos e meu avô foi junto. Depois encontrei Aldiná numa festa de família no sítio, arrumada com seu cabelo "joãozinho". Sorriu ao me ver. Desde então, as notícias são raras, vindas dos seus. Dizem que lembra de mim, e continua entrando e saindo do seu quarto e já não mora mais no bairro da Saúde.

Tela de Bel Borba

quinta-feira, 8 de março de 2012

Ondas de amor

Em meio a um dia deprimido, desejante de morte, naquela penumbra triste do entardecer, vou buscá-la nas escadarias, subindo com sua mala pesada  além de uma bolsa atravessada no tronco, degrau por degrau, sem reclamar e com bastante esforço. Sem perceber a minha presença no topo do primeiro lanço, quando decidi fazer-me invisível por alguns instantes para observar a cena, ela levanta as vistas e, ao focar-me, pede ajuda.

Quando chegamos, descansamos sentadas no sofá. Ela levanta, dá meia volta para não sei onde e nem o que, e estende os braços para o meu abraço dizendo: "Você é a melhor mãe do mundo". Eu não entendo. Só sei que não devo chorar nesse exato momento, porque o dia, como já disse, foi deprimido e desejante de morte, e eu não devo transmitir qualquer pedaço dele para ela, tão cheia de vida e disposição. Pergunto "por quê?", ainda no abraço. Então, con segurança, certeza e rapidez, vem a resposta: "Porque você é minha mãe."

Assim, de graça, com graça. Nesse dia paralítico, mesmo nesse dia no qual ela não sabe da metade das minhas angústias, eu sou a melhor mãe do mundo. Contenho a água ainda nos canais lacrimais como tenho "treinado" bastante durante as últimas semanas, desfarçando, engolindo o choro, antes que outra pessoa tenha a chance de perceber sequer o brilho umedecido do meu olhar.

Ela, definitivamente, não é meu objeto, quiçá objeto de consolo. Por isso escondo a emoção. Retribuo com carinho, em um abraço mais prolongado, recebendo a minha verdadeira injeção de ânimo. Levanto e recordo que devo preparar o almoço do dia seguinte. Vou cortando os temperos, alterando a ordem da minha receita. Costela de porco assada com batatas. Verifico que não tem o primordial feijão para acompanhar. Então, mais temperos picados, uma pequena feijoada, com aquela abóbora quase a estragar na geladeira. Em duas horas, tudo pronto. Ela resolve experimentar. Sirvo uma pequena porção do feijão e ela faz a sua última refeição antes de deitar-se.

Eu, como uma alga dentro do seu mar, atingida por suas ondas de amor, percebo os meus movimentos nesse dia, sem querer prejudicá-la com a minha paralisia, sem saber amanhã como será.

domingo, 4 de março de 2012

Livros

Eu pensei que você fosse um livro aberto
aliás, eu pensei que todos fossem livros abertos
Assim eu pensei e assim para mim pintaram
E me pouparam
E me podaram

Você é um livro aberto, como eu
Como as palavras que em ti leio e enxergo
que sem minhas palavras sobre mim,
que sem o folhear que faço sobre ti
Eu cego

Com você eu aprendi
Não há livro aberto
Só são livros
Discretos, herméticos
Donos de verdades solitárias e falantes
Livros na estante, enfileirados
Com o meu nome e o nome sobre mim assinados
Trechos memorizados

Há os que nunca veem e jamais verão meus olhos
Há os que já viram e não foram capazes de me entreter
Os que se foram, obsoletos ou rejeitados
Superficiais e inconsistentes

E, por fim, o meu único
Aberto quando o toco
ou quando a memória traz seus trechos...

O meu livro sagrado
que dorme e acorda todos os dias ao meu lado.

sábado, 3 de março de 2012

Simbólico

O meu saber repele a minha pele. Eu descamo, despelo. Tento fazer poesia para explicar a minha pele que muda os meus sentidos.

A minha gengiva também resolveu despelar, mas em pedaços tão grandes que mais parecia a minha língua saindo do lugar. Sabe pedaços de peito de frango, pedações pequenos, sem cozinhar? Assim eu, sentindo a pele solta sobre os meus dentes, meti os dedos dentro da boca e puxei a pele do lugar.

No pedaço de carne ainda podia ver os orifícios marcados pela ausência do dente. Apresentei o pedaço de carne a minha mãe e perguntei: "o que você pensa ser isso?" Ela respondeu, para a minha surpresa, com uma sabedoria ainda não sabida por mim: "isso é coisa de índio". Nossa! Eu achei que ela enxergaria somente o pedaço pequeno de peito de frango crú!

Coisa de índio na minha cabeça. Coisa natural. Passagem necessária, marcada. Minha pele animal. Bebê ganhando dentes ainda sem saber por quê.

Coisa de índio é ritual. Assim, aperto um fumo pra ficar legal, ando sem roupas pela casa, contemplo o sol, a lua, o mar.

Faço explicações claras, tenho vontade de chorar, por vezes me rasgar. Trocar a pele toda. Mas só posso fazer isso com a minha língua, com o que sai da minha boca a salivar.