domingo, 30 de dezembro de 2018

Mais sensíveis, menos sensibilizados. É necessário algo muito forte pra mexer com a couraça advinda das cicatrizes, pra afrouxar os pontos da sultura de modo que elas permitam o rasgo na grande membrana e a tesoura do desejo, a linha da saudade, a agulha da dor, os pontos da estrada em cascões sejam dispensados de suas funções e deixem entrar com tudo a poesia, o cheiro dos corpos, a suavidade das vozes, o gosto da boca, o raciocínio veloz e lógico, a música, o amor, a ilusão. Por mais sangrenta e brilhante a ação do rasgo, sempre será solidão.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Tinha a saudade do marinheiro também. Mas as baleias em festa no mar me provocaram gritinhos de muita alegria. Tanta alegria! Uma baleia bem de pertinho para estimar.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O BABÁ E A DONA DO TERREIRO

A água jorrava bem acima da cabeça dela molhando o seu corpo inteiro. Assim, escutando o chiado do jorro, ele foi chamado a se banhar. Ele disse que Xangô avisou por todos os meios que a sua senhora é e sempre será a Música. Debaixo d'água os dois, ela disse:

- Diga a Xangô que eu cheguei. Eu sou das águas, estarei sempre aqui pra você sempre ir com Nossa Senhora.

Banharam-se juntos. O corpo dela girando lentamente nas mãos dele, enquanto sorria. Possuíram-se. Molhados e exaustos, ele descansa a mão no peito dela e diz:

- É um reencontro. Eu não sei porque está acontecendo agora... É forte.

-  Você não esperava que eu fosse chegar tão rápido. Vou caminhar enquanto seus pedacinhos vão-se juntando.

- Não faça isso. Eu serei sempre dela, minha alma está vendida.

- Acha que eu cheguei por quê?

Ela gargalha alto, silencia bruscamente em seguida, se olham nos olhos e ele desvia. Então ela diz:

- Eu me sinto muito feliz aqui. Minha alma é ela. Nem preciso mais cantar.

 - Sim, você precisa! Seu canto é o que lhe faz existir.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Carta ao Maestro

Quando tudo é solidão e as paredes em branco nao sustentam o risco que eu faço, eu busco outras paredes. Não sei se o nome dessas coisas que sustentam a ponta do meu lápis, ainda que o façam escorregar, podem ser chamadas de paredes. Podem ser taludes, sapatas, tubulões, pilares, vigas, algo que impeça o meu tropeço. Alguém, não algo, algo não move a humanidade, alguém move a humanidade por alguém. Naquele dia de vento nulo e horizonte desaparecido, naquele dia em que levantei da mesa do jantar com o meu cão, eu cumprimentei alguém cuja fala no passado me fez paredes, pilares, essas coisas que impedem que o pensamento caia no buraco sem fundo. Foi só isso. O espelho-alguém disse que eu não estava tão só nessa cidade de pouca vergonha e muita verdade de pouca justiça e muita vaidade. Depois a saga da travessia, depois axé, depois meu primeiro panorama percussivo mundial, tudo entre o centro e o rio vermelho e eu, querendo silêncio de mim, diminuindo a urgência desse vômito musical, dessa coisa incontida porém barrada com muito esforço por um pouco menos de 220 horas mensais por tantos anos. Um pouco menos. Porque eu só chego tarde, quando as paredes estão trincadas, úmidas e escorregadias, e eu em terreno movediço.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Usam as mesmas palavrasd. Dizem que já leram o meu livro. Depois dizem que sou uma incógnita. Exigem o meu corpo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Mira ella mira
Mirou
Acende a luz na cabeça
Me conte do que já fui
Quando mira ella
pomba gira
Baiana roda
Padilha
Hermosa

Está doendo tanto
Mira para dentro en mi
Manuseia
Manuscreve
Alerta-te
E me deixa fugir lá pra onde não tem esconderijo
Lá onde o cão cansado desmaia em sono profundo
Onde o ventre chama pela vida
No lugar mais úmido do mundo
Bem lá dentro
Entre as formigas, sapos, cobras e preguiça
Onde as flores suportam o peso das águas muito maior do que elas

"em mim o eterno é música e amor"

A vida é sem sentido e eu tenho sentido pouco a vida, ainda que o vazio seja fruto do imaginário, ele vem como uma sensação, assim como o amor o é.
O solado adere ao chão sustentando o corpo trêmulo. O físico é aparentemente harmonioso e a sede avisa que o corpo está vivo.
Homem de mim.
Vinde a mim.
Cara no espelho.

domingo, 9 de dezembro de 2018

"Ando com saco da saudade
Tirando sarro da saudade
Escorraçando a saudade a ponta-pé
Ando mijando na saudade
Dando na cara da saudade
Dizendo pra ela quem ela é
E agora fico rindo sozinha
Na frente do espelho
E agora fico rindo só minha
Na frente do espelho
E agora fico rindo só linda
Na frente do espelho"
Uma mata, um cavalo, uma vaca, gatos, cães, neném, mar, casinha fresca, rede, horta, livros, lápis, papeis, contas, bicicleta, barco, mergulho, algumas coisas que doem, velhice, último suspiro, eu, você, o mundo. O que for manso, silêncio, música e poesia. 

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Encontro com o maestro

Todo dia é nascer e morrer. O sol morre a noite vive, o sol nasce a noite morre. Todo dia, todo dia, todo dia. Uma tristeza chega, e lá se vai a alegria. Quando o olhar está no nada, logo surge algo pra se olhar, um encontro pra se abraçar e lembrar que é preciso continuar a nascer e morrer, até que a morte faça desaparecer a vida e a vida continuar após a morte.
Olhe aqui por dentro, entre as pálpebras. O sorriso e as pazes durante o dia, o que lhe dizem? O trabalho com vigor, a rotina cumprida, contêm as lágrimas no cair do dia. Vai-se arrastando pela casa. Cadê a paixão, meu deus? Os beijos, a companhia, as gargalhadas, onde estão?  Uma mulher mal amada anda rasgando o mundo por onde passa. E se não está faltando alguém ao seu lado, do que sente falta?
As almas sempre encontram-se. Na grande membrana, os traços ancestrais marcam o amor. O desejo impõe o deslimite e assim, a água salgada que sai do corpo é capaz de encher um oceano e através das ondas enviar a mensagem: saudade.

domingo, 2 de dezembro de 2018

Uma voz com poder canta lá de longe que o sol há de brilhar mais uma vez. O longe é aqui. Escuto todo o repertório com clareza, a clareza que faz o silêncio do vento parado e das ondas mansas da maré vazia. Na folha de papel amarela amassada está escrito que a ilusão do ser humano é a de que ele rege o mundo. Os filósofos (para que os filosfiló?) para os angustiados seres humanos feitos de palavras cientes da morte. O mar agitado na volatilidade dos sentimentos. A evitação faz a sua parte com primazia.