segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Da vida para a poesia

Quadrilha
Composição: Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história

 


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Tensão pré-menstrual

Faz algum tempo não acredito em muita coisa, nem em TPM. A psicanálise fez favores a mim, inclusive o favor de chegar ao entendimento que uma tensão pré-menstrual não passa da acentuação de efeitos sintomáticos do próprio sujeito. Homem não tem TPM, portanto. Deve ter algo como uma tensão muito grande se não faz sexo, não coloca pra fora a sua "produção testoterógena". Como a interpretação é de cada um (mais um favor da psicanálise) eu chego as minhas conclusões. Sei que nesse período anterior à menstruação, o corpo feminino retém líquido, esperando um bebê que não vai chegar dentro do útero. Ai vem a minha opinião: pense num balde cheio depensamentos, sei lá, palavras, letras, frases, períodos, livros. Esse "material", menos denso que a água, está lá, no fundo de mim, às vezes vem nos meus sonhos, às vezes no meu ato falho, às vezes num momento de forte emoção, ou numlapso. Meu corpo, mensalmente, começa a segurar todo o líquido dentro dele, pensando que o tal bebê vai chegar. Água, água, água. (Lembrei na música horrorosa da péssima Cláudia Leite... o carnaval de Salvador já foi bom!) Agora esse balde cheio de todas aquelas coisas supracitadas, vai enchendo também de água, e tudo vai subindo, subindo, até transbordar, primeiro aos poucos, depois num choro, num grito, no medo, no pânico, na preguiça, na covardia, no excesso de emoção, contradição, nas dores de cabeça, no enjôo... enfim, em tudo o que todas as mulheres são capazes de sentir durante este período, inclusive várias passagens ao ato (matar também pode!). Assim, todo mês, entra água nos meus pensamentos. Dizem que atividade física melhora, eu sei muito bem disso. O lazer também. Toda mulher tem TPM? Não. Há aquelas que podem extrair proveito quando corre pra pegar um ônibus, quando é preciso subir e descer as ladeiras de Salvador, quando tem uma academia que preste bem pertinho da sua casa (quando não tem uma dentroda sua própria casa!), quando o dinheiro é suficiente para pagar a massoterapia, o personal trainer, uma viajem no final se semana, e principalmente, quando o trabalho lhe traz prazer.

Cresci vendo todas as mulheres da minha família exercendo a profissão de "dona de casa". É profissão? Não sei, mas que elas trabalhavam e ainda trabalham muito nisso é fato. Meu trabalho é externo, para uma empresa que polui o meio ambiente, monopoliza a ecomia nacional e destrói milhões de ecossistemas e, para se dizer responsável socialmente, patrocina a maioria dos eventos artísticos do Brasil e projetos sociais – o que não lhe custa muito. Enfim, o meu trabalho hoje não me traz prazer, ainda mais quando penso no verdadeiro produto do trabalho total da empresa. Mas fui crescendo e vendo as mulheres da minha vida trabalharem em casa, em prol dos seus, sustentadas financeiramente pelos seus maridos. Isso é primitivo, vem de longe, o homem tem a força braçal, o homem é provedor da alimentação, do sustento da família.

Estou vivendo em plena transformaçao social e faço parte da estatísca que mede o número de mulheres provedoras do seus lares. Para mim, total inversão das imagens que vivenciei, mesmo ouvindo repetitivamente minha mãe "orientando" que eu deveria estudar, trabalhar e sustentar a mim mesma, sem depender de homem para isso. Agora, pensando assim, rapidamente... casamento nada, né?! Aham... ela dizia que eu colocaria o homem para fora no caso de uma separação... (Estou na TPM, no transbordar dos meus pensamentos, quero chorar, estou sofrendo com minhas associações..). Eu fui obediente a ela, não a mim. Tenho notícias de pelo menos uma mulher que trabalha para seus luxos, e consegue fazer crescer uma poupança bancária rapidinho, porque o seu marido é o provedor, ele paga todas as contas e mais um pouquinho, ele trabalha e quase não respira, e ela desfila, e morre de amores por ele, faz jantar à luz de velas e tudo...

Como dizer com tanta autoridade o que eu tenho que fazer com o homem que eu escolher? As mães frustradas podem matar seus filhos... Estou sofrendo, paralisada, morrendo eventualmente. Não quero ficar nesse lugar, não quero obedecer a qualqer outra pessoa que não seja eu mesma. Eu quero enrolar docinhos, pintar, viajar sem os maridos com minhas irmãs e amigas, eu quero cuidar da minha casa e deixar ela sempre arrumada, como eu gosto, sair pra resolver alguma coisa e poder comprar um enfeite novo, encontrar um vestido na promoção e ficar feliz... Quero colocar meus projetos em prática, meu trabalho por prazer, fazer a minha faculdade a ajudar as pessoas a seguirem os seus próprios desejos...

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Eu morro

Lavanda, verde, roxo
De vez em quando eu morro
De vez em quando eu morro
Acordo e não levanto
Suspiro

Amarelo, carvão, fumaça
Desgraça
Assim de vez em quando eu morro e grito
Agito cor qualquer
Marrom, sem tom, ceu, vermelho, espelho
Então me vejo
Morrendo de vez em quando eu giro

Piso em pedras, arranho meus joelhos, desço
Subo, cancelo compromissos
Sumo quando eu morro
Tomo caldos de mim
Projeção de coisa que nunca serei

Amálgama, dourado, prateado
Assanhaço, Painaço
De vez em quando é assim
Eu acordo e viro
De vez em quando eu morro
Não ajo, não digo
Sem saber o que faço com isso

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Meu mestre

Meu Meste Coração
Composição: Milton Nascimento/Fernando Brant

Coração
meu tambor do peito, meu amigo cordial
fez de mim um amador
que por um carinhosobe até o Redentor
o rio que corre em mim
vem dessa nascente seu leito natural
o amor que existe em mim
vem desse caminho de vida que ele me traçou
Por me saber de cor
me leva no tempo para o mundo conhecer
território da paixão
coração me ensina a coragem de viver
me joga no mar de amar
nessa água boa eu irei navegar
e eu sou um aprendiz
que segue seu mestre aonde ele for
E o meu mestre é o meu coração
meu tambor do peito meu amigo cordial
fez de mim um amador
que por um carinho sobe até o redentor
o rio que corre em mim
vem desse caminho que ele me traçou
meu mestre é o coração
meu tambor do peito, meu amigo cordial
vida e paixão

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Dias assim...

Nuvem Negra
Composição: Djavan Caetano
D7M(9)                   B7(b5)
       Não adianta me ver       sorrir
  Bm6                     Gm6
Espelho meu    meu riso é seu
          F#m7   Em7(9)
Eu estou ilha----da
F#m7                  B7(b5)
     Hoje não ligo a TV
              Bm6
Nem mesmo pra ver  o Jô
        A7(4/9) A7(9)
Não vou sair
       F#m7          B7(b9)
Se ligarem não estou
    E/G#         Gm6
À manhã  que vem
        F#m7            B7(b9)
Nem bom-dia  eu vou dar
      E/G#         Gm6
Se chegar  alguém
                F#m7
A me pedir um favor
           Bm7 Bm/A
Eu não sei
     E/G#          Gm6
Tá difícil  ser eu
F#m7                Am7    D7(9)
Sem  reclamar de tu-----do

G7M                        Gm7
Passa  nuvem negra larga o dia
        Gm6             F#m7
E vê se leva o mal  que me   arrasou
                              Fm6
Pra que não faça sofrer mais ninguém
G7M                              Gm7
    Esse amor que é raro e é  preciso
        Gm6            F#m7
Pra nos levantar  me derrubou
                            F°(b13)
Não sabe parar de crescer e doer...

G7M                        Gm7
Passa  nuvem negra larga o dia
        Gm6             F#m7
E vê se leva o mal  que me   arrasou
                              Fm6
Pra que não faça sofrer mais ninguém
G7M                              Gm7
    Esse amor que é raro e é  preciso
        Gm6            F#m7
Pra nos levantar  me derrubou
                            F°(b13)  G7M    Gm7
Não sabe parar de crescer e doer...

Gm6  F#m7      F°(b13)  G7M    Gm7  Gm6  F#m7    B7(b9)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Meu Deus

Meu deus é a música
Aquela música
É plenitude, gozo
Abstrato
Em qualquer lugar
No caminhar
Falar
Sem som complica o meu ser
Quando falta a palavra
a música é a minha alma
Consolo
Coragem
Meus poros se abrem
E o que esteve no fundo
Vem à tona
Mexe, emudece, sonha

Meu deus canta
Pensa e fantasia
Em melodia
Revela minhas intenções
Meu objeto de devoção
Sem precisar da razão
Meus sons
Nostalgia, melancolia
Então eu me corto, recorto
Acordes, acordo
Ao som de todo dia

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Palavras de outrem

A minha felicidade não é a sua
Martha Medeiros

 
Foto: Caroline Lima
 

No mais recente livro de Carlos Moraes, o ótimo Agora Deus Vai Te Pegar Lá Fora, há um trecho em que uma mulher ouve a seguinte pergunta de um major: "Por que você não é feliz como todo mundo?". A que ela responde mais ou menos assim: "Como o senhor ousa dizer que não sou feliz? O que o senhor sabe do que eu digo para o meu marido depois do amor? E do que eu sinto quando ouço Vivaldi?E do que eu rio com meu filho? E por que mundos viajo quando leio Murilo Mendes? A sua felicidade, que eu respeito, não é minha, major".

 
E assim é. Temos a pretensão de decretar quem é feliz ou infeliz de acordo com nossa ótica particular, como se felicidade fosse algo que pudesse ser visualizado. Somos apresentados a alguém com olheiras profundas e imediatamente passamos a lamentar suas prováveis noites insones causadas por problemas tortuosos. Ou alguém faz uma queixa infantil da esposa e rapidamente decretamos que é um fracassado no amor, que seu casamento deve ser um inferno, pobre sujeito. É nessas horas que junto as pontas dos cinco dedos da mão e sacudo-a no ar, feito uma italiana indignada: mas que sabemos nós da vida dos ouitros, catzo?
 
Nossos momentos felizes se dão, quase todos, na intimidade, quando ninguém está nos vendo. O barulho da chave da porta, de madrugada, trazendo um adolescente de volta pra casa. O cálice de vinho oferecido por uma amiga com quem acabamos de fazer as pazes. Sentar no cinema, sozinha, para assistir o filme tão esperado. Depois de anos com o coração em marcha lenta, rever um ex-amor e descobrir que ainda é capaz de sentir palpitações. Os acordos secretos que temos com com filhos, netos, amigos. A emoção provocada por uma frase de um livro. A felicidade de uma cura. E a infelicidade aceita como parte do jogo - ninguém é tão feliz quanto aquele que lida bem com suas precariedades.

O que sei eu sobre aquele que parece radiante e aquela outra que parece à beira do suicídio? Eles podem parecer o que for e eu seguirei sem saber de nada, sem saber de onde eles extraem prazer e dor, como administram seus azedumes e seus êxtases, e muito menos por quanto anda a cotação de felicidade em suas vidas. Costumamos julgar roupas, comportamento, caráter - juízes indefectíveis que somos da vida alheia-, mas é um atrevimento nos outorgarmos o direito de reconhecer, apenas pelas aparências, quem sofre e quem está em paz.

A sua felicidade não é a minha, e a minha não é a de ninguém. Não se sabe nunca o que emociona intimamente uma pessoa, a que ela recorre para conquistar serenidade, em quais pensamentos se ampara quando quer descansar do mundo, o quanto de energia coloca no que faz, e no que ela é capaz de desfazer para manter-se sã. Toda felicidade é construída por emoções secretas. Podem até comentar sobre nós, mas nos capturar, só se permitirmos."


Breve biografia de Martha Medeiros (wikipédia)

Filha de José Bernardo Barreto de Medeiros e Isabel Mattos de Medeiros, é colunista do jornal Zero Hora de Porto Alegre, e de O Globo, do Rio de Janeiro. Casou-se com o publicitário Luiz Telmo de Oliveira Ramos e tem duas filhas. Estudou no Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, tradicional de Porto Alegre, localizado nos arredores do bairro Moinhos de Vento. Formou-se em 1982 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em Porto Alegre.
Trabalhou em propaganda e publicidade, mas logo se sentiu frustrada com a carreira. Quando seu marido recebeu uma proposta de trabalho no Chile, decidiu que uma mudança de país seria uma ótima oportunidade para dar um tempo na profissão. Esta estada de nove meses no Chile, na qual passou escrevendo poesia, acabou sendo um divisor de águas na sua vida. Quando voltou para Porto Alegre, começou a escrever crônicas para jornal e, a partir daí, sua carreira literária deslanchou.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Antes da palavra: o som e a imagem

Pra Te Lembrar
Composição: Nei Lisboa

Que é que eu vou fazer pra te esquecer?
Sempre que já nem me lembro, lembras pra mim
Cada sonho teu me abraça ao acordar
Como um anjo lindo
Mais leve que o ar
Tão doce de olhar
Que nenhum adeus pode apagar...

Que é que eu vou fazer pra te deixar?
Sempre que eu apresso o passo, passas por mim
E um silêncio teu me pede pra voltar
Ao te ver seguindo
Mais leve que o ar
Tão doce de olhar
Que nenhum adeus pode apagar

Que é que eu vou fazer pra te lembrar?
Como tantos que eu conheço e esqueço de amar
Em que espelho teu, sou eu que vou estar?
A te ver sorrindo
Mais leve que o ar
Tão doce de olhar
Que nenhum adeus vai apagar..."


Eu gosto de poesia, mas poesia musicada. Sem música não há poesia pra mim. O que vem primeiro para qualquer ser humano é o som, antes mesmo da noção de si. No período intra-uterino, é só som, muitos, muitos estímulos sonoros. Pesquisas indicam que a partir do quinto mês de gestação, quando o aparelho auditivo está pronto, aproximadamente, a criança começa a escutar. Os olhos ainda não veem. Depois que nasce, passa a enxergar, primeiro turvo, depois a visão fica límpida e inicia-se o processo de aprendizagem através do que vê e ouve até chegar à palavra.

A poesia musicada acima, cantada por Caetano Veloso (eu adoro Caetano!) é um simples exemplo de como a beleza que há nos sons se propaga. Fiz a minha viagem ao trabalho hoje ouvindo Açaí, de Djavan, outro Caetano. Para quem não sabe, o nome de Djavan é Djavan Caetano Viana. Quando conheci essa música eu era muito criança, através do disco de vinil chamado Luz, repleto de sucessos do início da carreira dele.

O que eu quero dizer é que eu ouvia essas músicas todas e não sabia colocar nomes no que elas me provocavam. Só sentia, ouvia, cantava. O entendimento, interpretação, a leitura propriamente dita, veio mais tarde... Sabe aquela sensação de "eu já sabia que era bonita, mas não sabia que era tão bonita!..."? E o sentimento de euforia e prazer que tem esse encantamento?  A arte quando me toca faz isso comigo... Não sei se consegui descrever bem ou se isso acontece com todo mundo.

Ontem ganhei umas fotografias e senti isso que a poesia musicada me faz. Costumo chamar a fotógrafa de Macaca, ou Macakona. Já viram o bicho lindo que é um macaco? Assim como os cães...  Postarei a fotografia em breve.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Coisa feia é buraco

Os furos do meu corpo não me trazem beleza
Que beleza tem a minha orelha
Minhas narinas
Meus olhos
Minha buceta

Meus poros são tristeza

qualquer sentimento entra poeira

ânus para que te quero
só exala a pobreza

Coisa feia é buraco
Só traz tristeza
Fundo do poço
Poço sem fundo
Buraco do mundo

Para que eu quero tanto buraco
Se no fundo, no fundo
Tudo é escuro
Se no fundo, no fundo
Tudo é imundo

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Por fora, por dentro

Ti Ti Ti na televisão - novela da família. Eis que um ser de 7 anos de nascida fala, assistindo à interpretação caricatural de Claudia Raia:

- Mãe, ela tá por fora...
- O quê...?
- Jaqueline está com raiva de Jack por fora, mas por dentro ela gosta dele.
- Aham...


A condição de ser humano tem tendência a mascarar os sentimentos, favorecendo à moral, pudor, ao que já impuseram como bons costumes. O que sentimos "por fora" é, na maioria das vezes, a barreira para o que sentimos "por dentro".
A criança até uma certa idade não faz essa diferença. Fala o que pensa. Se ela disser "você é feio", é porque ela te acha feio mesmo! Rsrsrrsr Um dia minha filha disse que queria conhecer Xuxa no Rio de Janeiro. Disse a ela que isso seria difícil acontecer, mas não impossível. Então ela acordou no outro dia e antes de sair da cama me conta: "mãe, sonhei que estava na casa de Xuxa no Rio de Janeiro!" A realização do seu desejo, formação do seu inconsciente.


Observar minha filha crescendo ao mesmo tempo em que estudo a psicanálise sempre trouxe a mim e consequentemente à ela, grandes lucros. O meu trabalho de análise também foi de extrema importância. Em várias ocasiões pude fazer uma intervenção maternal-analítica (estou inventando esta expressão, não tenho outro nome a dar) e os resultados foram surpreendentes. Enquanto as pessoas subestimavam a capacidade de uma criança entender o que um adulto falava, ela vinha trazendo provas do completamente contrário.


A sua introdução na escola aconteceu aos 15 meses. Levei quinze dias presenciando as aulas, ora de perto, ora de longe, depois escondida, observando. Troquei a fralda dela junto com a auxiliar, sentei junto com os seus colegas na sala de aula, fui ao parquinho de areia e logo pude sentir a segurança no trabalho dos profissionais envolvidos, na minha filha e em mim mesma para deixá-la um turno sem a minha presença e das pessoas familiares. Consegui o transporte escolar no dia em que tive que retornar ao trabalho, e não tive tempo de fazer esta adaptação. Recebi um telefonema desesperado de minha mãe dizendo que não a levaria mais ao carro pois ela estava chorando demais para ir. Fui à análise, e saí de lá com o entendimento do quanto é importante explicar à criança tudo o que se passaria com ela. Então, expliquei que a levaria ao transporte, depois o transportador a deixaria na escola e, quando o céu estivesse ficando mais escuro, ele a pegaria na escola e a traria de volta para mim, todos os dias. Assim o fiz. Ela não chorou nesse dia, nem nos próximos.


Quando um pouco mais velha, já entrando na fase a qual a psicanálise denomina de anal, ela apresentou prisão de ventre. Sua dificuldade para defecar foi preocupante, pois sofria quando sentia vontade de fazer o cocô. Pedia para ficar conversando, para ler histórias, e eu confusa, pois a sua alimentação sempre foi saudável e aquilo não era normal. E menos normal ainda era ter que pedir auxílio nessa hora, pois todo ser humano saudável deve fazer suas necessidades fisiológicas sem ajuda de outrem. Sob os cuidados de minha mãe, o seu desejo de companhia nessa hora era saciado, bem como na presença do pai. Eu pedia encarecidamente que não o fizessem, introduzi as palavras, explicando para os três que esse era um momento particular, individual. Cheguei ao ponto de gritar tentanto explicar aos adultos que a companhia num momento como esse de intimidade com o próprio corpo tende a erotizar a criança, e ela precisa passar pelo processo de autoconhecimento, automanipulação, processo de sentir o corpo como seu, como imagem de si mesma. A ignorância paterna a levou desnecessariamente à emergência hospitalar e a aquisição de solução parental para pacientes em estado vegetativo e comprimidos de Yakult. Tudo diretamente para o lixo. Não dei uma dose sequer. Sabia o que tinha que ser feito. Expulsei minha mãe do banheiro e transmiti a mensagem a minha pequena, e ela mais uma vez respondeu positivamente, Educando o próprio pai e deixando de sofrer.

Desde que comecei a fazer análise eu leio Françoise Dolto, mulher que deixou clara a questão da importância do diálogo com a criança desde o ventre materno em diante, e provou isso com a sua Maison Verte (Casa Verde), na França, onde as mães tinham que retornar ao trabalho e deixar seus bebês. Não eram crianças de mais de três anos, mas recém-nascidos mesmo. Pude perceber o quanto um adulto pode interferir na vida de uma criança, sujeito em formação, sem inconsciente ainda, sem coisas "por dentro". O que vem de fora é o que trará o conteúdo de dentro. Eu declaro sempre que a minha obrigação é ser saudável para tornar minha filha saudável também. Não sabemos o que irá impressionar um sujeito em construção, por isso é preciso ter bastante cuidado com o ambiente onde esse sujeito irá desenvolver-se. Por não ser casada, abri mão do conforto de morar com meus pais antes de minha filha completar os 24 meses. A solidão trouxe alguns pontos negativos como a minha primeira crise depressiva, mas não abri mão de oferecer a ela um lugar só meu e dela, agora meu, dela e do meu companheiro, representação da figura paterna autorizada por mim e acatada por pela mesma.


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Ser bicho

Ser bicho não tem motivo
Basta ser
Bicho não tem porquê
Não faz projeto para viver
Ser bicho não pensa na morte
Também não se vende para outro ser
Tanto faz o poder, tanto faz a sorte
Não tem angústia nem agonia

Ah! Se eu pudesse escolher...
Um dia bicho eu quero ser
Se tem raiva é pra se proteger
Deixa a vida correr sem perceber
Deixa a velhice chegar sem reclamar
A lei é perpetuar

Não reflete, não narcisa
Ser bicho não erotiza
Por isso não tem motivo
Basta ser bicho