terça-feira, 22 de outubro de 2019

 Discurse o que desejar, mas mantenha a distância do meu corpo caminhante pela cidade atravessadora de suas dores em mim. Na minha ancestralidade presente. Em mim. Na cara daquele preto e daquelas pretas, tão familiares na roda que chamei pra sambar. É bom sambar com consciência da roda girando. Sambar com espelho inquebrável, porque a roda movimenta   a ignorância e traz alguma boa sorte. Que bonito esse movimento de complementaridade que está acontecendo. Movimento de pretos, trans e jovens. Movimento de música e amor com vontade de muito trabalho.

Voltei pra escutar a voz da preta. Tornei-me submissa, de modo a permanecer viva. Ela sempre me salva. Ela. A música. Sem som nada de mundo. Sem som do silêncio nada de relacionamento. Vamos juntar três vozes de mulheres pretas do recôncavo baiano. Submeto-me às três vozes. A minha espelhada nas vozes delas. Uma promessa de vida é o que há. Como duvidar dos orixás? Para quê duvidar da ancestralidade transgeracionada no corpo inconsciente? Tamanha consciência! Que assim seja.

Contei pro preto sobre as três vozes. Submeto-me a esse preto. Sedenta de sua pele eu fico. Sofro. Sinto saudades do que foi e teria sido. Suspeito do racismo. A branca que tocava nele procurou saber quem é a preta. Pouca coisa me interessa nessa cidade.

Na portaa preta mandou me chamar. Cadê ela? Preta Luiza com um turbante na cabeça. Olhos nos olhos com vestes coloridas, estendo-lhe a minha mão. Pouca força preta velha imprime na minha mão direita. Um toque macio e delicado. Deve ser pra saber se eu lavo panos e limpo o chão.
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Os dias e noites na beira do mar na companhia das ondas morrendo na areia é uma invasão sonora em meu corpo implodível.

 Ouvi dizer que a preta Luiza sai todo dia de Itaparica e atravessa o mar sem saber nadar. Ela vende coisas. Todos os dias também as moças lavam panelas enormes nesse lugar aonde vai Luiza. Uma outra moça teima em catar siri quando fazer isso esta proibido nesse mesmo lugar de beira de mar aonde Luiza chega todo os dias de Itaparica. Ela cata siri desde criança. As moças lavam panelas desde o debute. Todas sabem a hora que o vento revira tudo no mar desse lugar.

A terceira voz chegou ontem das mãos da atriz. E não é só voz que chega. O corpo vem dançado e batucado. Eu no meio das pretas. Bem preta eu sou assistindo e me acolhendo nelas. Lindas. Maravilhosas. Quando a palavra vem pra dizer deve ser bem-dita.

Podemos adaptar a história. Preta Luiza saía de Salvador e atravessava o rio Paraguaçu - um dia ela ia, outro dia ela voltava. Soube que pra onde ela ia, festejavam a morte. A boa morte. Essa morte que é vida.

Estou na orla beira de rio. Passei a noite em claro porque os morcegos no sótão conversaram a noite inteira. Uma escrita Atensional com algum propósito é movimento? Quando me espelhei nas pretas senti um aconchego. Elas parecem comigo. Parecem meus primos também. Vamos montar uma banda e serestar na esquina. Atabaque chora, chora também o amor em mim.

Na beira do mar do rio vermelho as duas pretas se cruzaram em sentidos opostos. Uma carregava sacolas plásticas cheias nas duas mãos. A outra segurava a guia do cão - este caminhava ao seu lado sobre a balaustrada.
- Bom dia.
A preta, sorridente, disse a outra. Ao mesmo tempo a outra dizia:
- Linda.
Elas olharam-se nos olhos. Os passos continuaram firmes em seus sentidos e nunca olharam pra trás. Um preta ficou em dúvida sobre ter escutado "linda", a preta tinha a fala de Luanda, então... Há que se receber um elogio e ter um bom dia.

Estava chovendo muito no dia do enterro da preta velha. Passagem. Uma tristeza demais com saudade demais. A preta velha morreu cega. Nunca saía do terreiro. Como tem que ser. Duas pretas foram antes visitar e cantaram pra ela já cega. Foram tantos abraços em silêncio por estarem ali. Pela última vez.


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