sexta-feira, 6 de maio de 2011

Todos que são eu.


Uma revelação em meio a um evento. Um show de Ivete Sangalo, no qual a mesma iria apresentar o seu filho ao público, como as mães geralmente fazem quando o filho completa um ano de idade – a festa não é para ele, é para ela. Para ele posto que é para ela. Quando na idade de um ano, ambos, mãe e filho, ainda são extensões.

Recordo emocionar-me com uma música, daí o encontro posterior com uma mulher jovem, pertencente à equipe de Ivete, encontrar comigo e fazer a seguinte colocação: não chore, não precisa chorar. Ela sorria, compreensiva. Depois de poucos minutos, recebo o recado que vem de boca a boca – ivete mandou me chamar, quer falar comigo. No momento converso com alguém do qual me despeço apressada, afinal, ivete mandou me chamar, ela quer falar comigo.

Assim nos encontramos. Sua voz grave, bonita, fala que eu não preciso chorar, que sou uma pessoa muito especial. Eu sinto uma energia muito boa vindo dela, me envolvendo em seus braços, eu enlaçada na sua cintura, olhando para cima, para sua face, pois ela é mais alta que eu, me causando conforto. Eu agradeço e devolvo o elogio: você é quem é maravilhosa. Mas ela está apressada, acabou de chegar e vai entrar para o trabalho, espaço lotado. Pede para eu assistir ao show pois vai apresentar o seu filho, detalhe que pouca gente sabia. Eu fora privilegiada com a informação!

De volta ao espaço, como numa feira, muitos stands a entreter as pessoas, chão de terra batida, às vezes uma grama falhada, às vezes passagens em concreto, com cobertua, sem cobertura, toldos, cercas. Encontro minha mãe e ao seu lado, caminho muito, descalça, cansada, andando para lá e para cá. Ela expressivamente séria, eu tentando acompanhar os seus passos, ofegante já. Ela para, exercendo uma atividade da qual não me dou conta de saber, e me faz a revelação: seu pai não é seu pai, seu pai é João. Eu não peço para repetir, peço para me explicar como, quando, pois a sua fala me trazia tantas respostas... Ela sempre a executar algo, não olhava para mim, séria, continuava falando. Teria engravidado quando numa viagem de meu pai conheceu João e se apaixonou, e engravidou. Como, se eu fora planejada? Então eu era filha de João. Não chorei, sai como uma louca a pensar, repensar, recordar, encontrando toda a lógica dos acontecimentos da minha vida. Por isso ela não me queria morando na sua casa, por isso ela tinha por mim um tratamento diferenciado das outras, por isso a sua dificuldade em me amar. Por isso queria me ver longe, mas sabendo notícias sobre mim.

Quando eu acordasse iria perguntar, com certeza, se eu era realmente filha de meu pai.

Continuei a andar, cansada, aglomeração de pessoas porque ivete estava anunciando a surpresa já sabida por mim. Eu queria ver o pequeno, fui tentando chegar perto, com toda a dificuldade de um ambiente extremamente lotado. Mas como tudo é possível, eu assisti a entrada dele, seu filho pequeno, em meio de tantas outras crianças no palco, entrou triunfalmente, com uma vestimenta de  palhaço, misturada com outros retalhos, muito seguro no palco – filho de artista, artista é. Desenvolto, respondendo com simpatia à euforia do público.

Eu angustiada, o vi só para constatar o episódio, e sai, pés descalços, iam machucando no caminhar, pedriscos, alívio no piso batido de cimento, porém muito áspero. Desejei calçar os pés. Passos acelerados, encontrei João. Ele já sabia. Também havia tomado conhecimento a poucas horas. Ele me conhecia, claro! João, meu colega de trabalho! Idade de ser meu pai, talvez. Sem qualquer sentimento um pelo outro, eu me aproximo e chamo: João... E alivio meu pranto aconchegada no seu peito, ele me abraça. Pois é, só soubemos agora...

Alguém passa e pergunta que emoção era aquela. Porém eu sentia que ele era a única pessoa no momento a entender o que se passava em mim. Depois eu saía, vivendo uma mistura de ambientes, prédio da administração da fábrica, banheiros da fábrica, saguão. Carregava comigo a novidade, meu pai era João, mais ninguém sabia. João, o amor mal resolvido de minha mãe.

Se eu era filha de João, João meu avô, então eu era irmã de minha mãe. Irmã, rival, concorrente do amor do pai.

Depois uma família estranha, eu sentava junto ao pai, pele clara, lábios bonitos, fala sedutora, cheiro de perfume agradável ao meu olfato. Uma atração de criança, somente com a sexualidade, sem genitalidade. Eu declaro saber que não é o meu pai biológico, ele confirma, e continuo, dizendo que assim mesmo, continuará representando a paternidade para mim. Ele não, começa a sentir atração por mim, me persegue, eu fujo. O bairro é Piatã, Patamares, algo com a letra P. Por um momento a casa é muito grande, em outros, uma casa de campping. Muito verde. Mata densa, mar, existem duas irmãs, mas não interferem diretamente na história. Corro, não para o mar, corro pela terra, forrada de grama de praia. Ele está bêbado, é essa a impressão. Deparo com baleias jubartes, muitas, vêm rolando para a areia, eu esquivando. Se passar por um tal caminho, há macacos, ferozes, corro para outro lado. Um areal, encontro a mãe, de longe, ela pensa em me salvar, mas de repente muda de ideia e resolve me encurralar. Aí, sou filha de um artista, famoso, tipo Mick Jagger, não sei. Artista internacional. Ele desiste, resolve tomar outro rumo. A casa agora é grande, vazia. Moro numa extensão da casa e, acompanhada por uma senhora, babá de meu filho e carregando o mesmo, me acompanha numa visita pela casa antiga, por onde passo, visitando cada cômodo, um por um, identificando a cozinha, a sala etc. Cômodos vazios, eu não sei o que fazer. Ali, eu penso, foi onde vivi meu pesadelo que acabou.

3 comentários:

  1. Me senti lendo um conto de Clarice Lispector! Como você consegue transcrever tão bem assim um sonho? Envolvente, intrigante, empolgante. Adorei o texto! Depois me conta a análise que fez dele.

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  2. Sonho porque não paro de pensar, escrevo porque dói. Quanto à análise, estou fazendo até agora.. Esse transcrito tem muitos meses...

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  3. Olá... Gostei do blog!! Valeu por ter passado no catarsevirtual e deixado um comentário.

    bjs

    anderson

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