domingo, 11 de março de 2012

Quarto de Aldiná

Às vezes eu visito o quarto escuro de Aldiná. Faço o percurso até o bairro da Saúde, chego à porta do casarão e crio coragem para subir as escadas. É só uma visita, embora o lugar tenha aparência sombria. Um casarão antigo, escadarias de madeira, piso bambeando. O assoalho está velho e tenho a impressão de que, a qualquer momento, o chão irá desmoronar a cada passo meu. Os móveis todos fora dos seus lugares convencionais, espanto-me com a geladeira na sala.

E, como vai Aldiná? Ela mora nessa casa e não veio me receber? Alguém faz sinal com os olhos e direcionando a cabeça aponta o quarto onde ela está. Vou em passos muito lentos, ouvindo o ranger da madeira, até à porta do quarto de Aldiná. Ninguém sabe por que, mas às vezes ela entra no seu aposento e de lá demora a sair. Como nunca a vi nesse estado de enclausuramento, curiosamente aproximo os meus ouvidos e bato na porta, aguardando uma permissão para entrar. Alguém avisa de lá da sala que eu posso prosseguir. Abro vagarosamente e não enxergo prontamente qualquer cena. As vistas procuram a incidência de luz e alguma coisa que ela possa formatar. Assim vejo ao fundo uma cama encostada na parede e Aldiná sentada com os lençóis sobre suas pernas. Sem expressão, sem emoção. Sem choro, sem queixas, nem agressão. Nem um sorriso para a visita. Cabelos crespos despenteados. Eu ouço novamente: é assim, ela fica assim e logo resolve sair do quarto.

Meus encontros com Aldiná foram todos na casa de meus avós paternos no bairro das Sete Portas. Ela sorria timidamente para mim e depois ia cuidar da limpeza da cozinha. Quando não estava em total silêncio, resmungava em tom baixo e consigo mesma palavras que ninguém ouvia. Não opinava, não gargalhava, não cantava, não dançava. Usava a torneira da pia de tal forma que a água saía como um fio e assim o tempo para a lavagem das louças era lento. Quando ia embora ao final da tarde, levava o lixo num saco. Minha avó a ocupava, eu penso, porque ela nunca se afastou de lá. Aliás, isso só ocorreu quando por impossibilidade devido ao Alzheimer, minha avó deixou a sua própria casa para morar com um dos filhos e meu avô foi junto. Depois encontrei Aldiná numa festa de família no sítio, arrumada com seu cabelo "joãozinho". Sorriu ao me ver. Desde então, as notícias são raras, vindas dos seus. Dizem que lembra de mim, e continua entrando e saindo do seu quarto e já não mora mais no bairro da Saúde.

Tela de Bel Borba

2 comentários:

  1. Não tenho sequer uma vaga lembrança de Aldiná... Procurei aqui na minha mente enquanto lia o seu texto e vieram muito vagas lembranças da casa, não sei se por causa da sua descrição ou por alguma lembrança mesmo. Mas da pessoa dela não lembro. Visito a nossa história familiar através dos seus textos. Adoro!
    E que quadro é esse q achou? Parace minha avó! Muito bom!

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  2. Essa tela está na exposição de Bel Borba, no Palacete das Artes, no Corredor da Vitória, mesmo lugar onde está a exposição de Rodin.

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