terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O caminho do meio

Continuo procurando a origem dos minhas reações diante da vida real – os meus sintomas. Lembranças furtivas da infância vêm à consciência. As datas comemorativas não me causam aquela euforia, a alegria de simplesmente ser o determinado dia. Atribuo à vivência do meu primeiro ano, quando repentinamente minha mãe foi obrigada a ausentar-se em decorrência do trabalho de parto, quando nasceu a sua filha caçula. Talvez um acontecimento sem palavras dirigidas a mim e em meio a turbulência de um casamento imaturo. Sou a filha do meio.

Vivi a rejeição encarnada na minha irmã mais velha, afinal, dois anos e meio depois, eu havia surgido, mesmo que planejadamente, no lugar onde só a ela pertencia. Há um relato no qual eu ainda muito bebê, dela recebi um tapa na cara. Françoise Dolto coloca fatos como tapas e mordidas entre crianças dentro da falta de linguagem palavreada, relacionado à curiosidade de um sujeito para com o outro. Penso que o filho do meio fica num lugar de complicada significância. O mais velho, primogênito, a mais nova, a caçula. O do meio, no meio, não há um subjetivo consistente ao que me parece. Algo que permance no meio nos remete à ideia de conter caracteríscas das pontas, esquerda e direita, à ideia de equilíbrio, de constância – o que não há no ser humano das suas mais variadas formas de cultura.

Cresci escutando diariamente da minha irmã mais velha que o meu nariz não era nariz, eram ventas. O seu nariz, bem característico da raça negra herdada da nossa família paterna, era notoriamente diferente, pois o meu aprensentou logo a mistura entre uma mãe branca de olhos verdes claros e um pai negro. Então assim ela também me chamava em tom ameaçador e conceituoso: "sua negra!" Eu escutei durante anos, porém não houve qualquer internalização desse sentimento que por sua entoação de voz era dirigido com o objetivo de ofender a minha origem.

Quando uma briga qualquer com a irmã caçula, logo um intervenção da mais velha, sempre a favor da mais nova. Eu não possuía a liberdade para uma briga entre irmãs. Então uma articulação manipuladora era montada. Dois anos e meio de diferença durante a fase de crescimento e desenvolvimento de automonia entre duas crianças é algo importante a se considerar. Há que se ter um cuidado dos pais ou educadores para orientar essa convivência, transmitindo conceitos e valores como respeito, auto estima e segurança, espírito de comunidade e socialização, os quais a criança apreenderá e carregará para a sua geração.

Como minha irmã mais velha era uma exemplar aluna na escola e seu comportamento era impecável do trato para com os demais da família, representando bem a "ninhada" de meus pais, nada poderia abalar a sua imagem. Sua cama era individual (eu e a caçula dormíamos num beliche) e intocável, nenhuma das irmãs era autorizada a sentar-se nela, a não ser pela proprietária. Isso valia também para seus demais objetos, como brinquedos. Ah! Os brinquedos... tão inacessíveis e pouco socializados. A mão de minha mãe também descansava sobre essa regra. Um dia, eu queria o seu quadro negro, bem maior que o meu, mas não fui autorizada. Indignada por não poder usar visto que estava lá, parado, eu comecei a chorar, chorar muito. Meu pai, numa cena característica dos finais de semana, sempre desastrosos com a família, carregava na sua mão um copo de uísque e, diante da concordância materna em relação a tal "lei do quadro", tão arbitrária, permitiu que eu riscasse todo o chão de taco de madeira com giz. Nada pior para uma criança, a permissividade de um pai. Mas esse é um discusso para outro texto.

Seu vocabulário era extenso, (afinal aprendeu a ler e escrever antes das outras!), com habilidade conseguia persuadir os mais novos. Quando confidenciei-lhe um segredo, fui chantegeada até ao ponto de abrir mão do mesmo. Minha habilidade para circular entre as diversas faixas etárias era nata, mas inaceitável quando alguém do seu círculo era por mim atraído. Fui crescendo e tirando as minhas conclusões, tornando-me um sujeito que, entre trancos e barrancos, capegante nas descobertas e encontros com seus desejos até hoje, um dia chegou a pensar que não sabia desejar, pois os entes "queridos" declaravam-me como tal. Ao ser solicitada por minha mãe pela última vez para interceder num diálogo pacificador diante das inúmeras brigas conclusivas de separação com meu pai, eu disse não. Não iria me posicionar porque eu era filha, e não mulher dele, e esse não era um papel meu. Assim fui imediatamente retrucada pela minha irmã mais velha, agora adulta, formada em direito e "a única pessoa de direito" conhecida por minha mãe (segundo as palavras da mesma): "Essa menina não serve pra nada mesmo, é uma inútil!" Permaneci na minha posição, embora carregada pela dúvida "será que sou mesmo isso que dizem de mim?" Por muito tempo vivi essa retórica, pensando que conduzi a minha vida em prol de transgredir a vida "exemplar" de minha irmã mais velha. 

Hoje, faltando alguns dias para completar os meus trinta anos de nascida, sei que descolei da minha origem. Posso pensar livremente, independente. Deixo o caminho do meio, ao qual nunca pertenci.

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