terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Relendo produções - psicanálise

Estou arrumando meu computador. Daqui a alguns meses devo partir em nova empreitada profissional, uma mudança de ambiente para proporcionar a ampliação do meu horizonte. Sabe como é, passarinho acostumado a voar não vive em gaiola.

Sou amante da psicanálise desde 2003. Uma vez em psicanálise, sempre em análise. Hoje trago um texto das minhas produções que retrata bem o início do trabalho de uma análise. Ele foi desenvolvido em 2008 enquanto eu participava da Confraria dos Saberes e fazia um atendimento supervisionado. Regularmente era exigido uma apresentação da clínica. Confesso ter passado por momentos de angústia durante esta produção. A minha primeira apresentação havia sido um fracasso pois não casei os fatos descritos com a teoria. Minha formação é técnica em edificações, e o que eu sei da psicanálise ou da psicologia eu aprendi no decorrer dos anos em que estive em análise, no contato com outros psicanalistas, no debruçar das leituras que faço até hoje, da visita que fiz na universidade de psicologia e filosofia e com as observações que faço do alheio.

Freud não colocou a psicanálise no meio acadêmico, muito pelo contrário. A psicanálise não é considerada uma ciência e não existe diploma de psicanalista. A premissa para ser um psicanalista está em desenvolver o trabalho de análise individual e concluí-lo, e estudar a teoria, principalmente dos textos freudianos, pois tudo originou deles. Infelizmente existe uma leva de pessoas que se dizem psicanalistas e nem sequer estudaram textos freudianos. Muitos se dizem qualquer outra coisa, menos freudianos. Sem ler Freud, não dá, para os mais dignos profissionais, se autorizarem a psicanalistas. É uma pena que exista tão pouca dignidade neste meio...

Segue o texto:

EXPOSIÇÃO DE CASO CLÍNICO – 24/01/2008

Hoje vou expor alguns recortes de três das cinco meninas que estão trabalhando comigo individualmente. A primeira é uma adolescente de 12 anos, abandonada pela mãe e sem pai – o pai morreu. A mãe a deixou sob cuidados de pessoas que resolveram abrir mão dessa responsabilidade e assim ela passou a residir na Acopamec, há dois anos, tempo durante o qual, mesmo sabendo da existência de parentes no interior da Bahia, nunca visitou qualquer um deles. Essa menina foi a segunda analisante encaminhada a mim, totalizando até o momento 3 meses de sessões de análise semanais. O trabalho se processa bastante lentamente, pois durante a maior parte do tempo da sessão ela se mantém em silêncio, porém traz sinais de desejo de continuidade do trabalho. Digo isso porque ela sempre utiliza os materiais que lhes são oferecidos e fala como pode, sobre o que está produzindo ou produz. As colocações são curtas, quase monossilábicas. Ou então fala sobre outras coisas, mas sempre com as mãos em atividade. Fala com a sua “boca de mão”, como [Françoise] Dolto coloca. Dentre essas curtas colocações, sempre responde a qualquer devolução que eu faça ao seu discurso, com um “sei lá” ou com um “não sei”, até que num determinado dia, eu perguntei: “sei lá, onde?”. Ela sabe, mas em outro lugar, lugar que ainda não tem acesso para tornar verbais suas informações, seus arquivos. O “não sei” não deixa de ter sentido semelhante ao “sei lá”. Retira-se o NÃO, fica o SEI. Logo, sabe. Ligo esse ponto a um dos desenhos que ela produziu. Desenha margens em todo o perímetro do papel. O nome margem foi colocado pela mesma. Não desenha dentro das margens, deixa vazio. Talvez o vazio deixado pela ausência da figura materna na vida dessa menina. Enfim, como já disse, o trabalho com ela tem sido lento, mas há uma progressão na análise.

A segunda analisante é uma adolescente, entre 14 e 16 anos, não recordo ao certo. Aparência física de criança, bem magra, feições de criança, sem curvas provenientes da adolescência feminina. Um mês de sessões de análise semanais. Chega falante, diz que não quer falar de coisas tristes da vida dela, que já passou, que não gosta de lembrar. A minha posição do momento foi de ressaltar que se ela tentasse falar dessas coisas tristes e trabalhasse isso, poderia mais tarde suportar lembrar e lembrar como um aprendizado e não como uma tristeza. Essa foi a devolução que fiz, mas talvez pudesse ter recolocado a questão do contrato de trabalho, que é falar. Como ela deslocou o discurso para outros pontos, percebi que a minha devolução talvez não tivesse sido o suficiente. O que fazer para ela falar dessa tristeza, dessa demanda, já que veio de um dos grupos do mundofreudiano no qual alegou que não podia falar tudo porque as demais caçoavam dela e ali, no espaço reservado para ela, não queria abordar de tais assuntos. Enfim, continua seu discurso, denunciando sempre atitudes abusivas das educadoras, relatando suas reações diante de tais situações, muitas vezes agressivas (aí aparece a questão da falência da verbalização). Como só ocorreram quatro sessões, estou ainda no momento de escuta, com pouquíssimas intervenções. Ela trabalha com a argila, leva caderninho de frases transcritas, sempre com fundo amoroso, como se estivesse persistindo em falar só de flores e preferisse esquecer dos espinhos. Na última sessão questionou se ia ficar falando, falando, queria saber que horas terminaria a sessão, até quando teria que vir etc. Percebo a desaceleração da fala, bordeando o vazio, como no primeiro recorte que apresentei. A primeira fica em silêncio e se organiza para trabalhar o vazio, a segunda fala, fala, fala, desacelera, depara com o vazio e se organiza para trabalhá-lo.

O terceiro recorte é de uma adolescente de 12 anos, participante também no mundofreudiano, espaço no qual é a única que vem apresentando uma participação significativa, escrevendo ou desenhando, produzindo falas, entendendo funcionamento do dispositivo. Dentro do possível, porque a dificuldade que todas as meninas têm de falar de si mesmas reunidas com pessoas que moram na mesma casa e onde se constituem como família no abrigo, é fato a ser discutido, pois existe algo que, ao meu entendimento, bloqueia boa parte das produções. Enfim, chegando à primeira sessão de análise, inicio pelas entrevistas preliminares, fazendo o contrato e ressalvas, e ela inicia seu discurso, falando da sua história que contém cenas de violência dos maridos da sua mãe (a mãe apanhou do pai da menina, separou-se, casou-se novamente, apanhou do marido, separou-se, reatou com o primeiro e continua apanhando). O que mais ela frisou na sua fala foi uma colocação da mãe que persiste todas as vezes que ela visita a casa e presencia as cenas – a mãe diz que vai sumir. Ela diz que tem medo que a mãe suma mesmo, por isso quer sair da Acopamec, onde está há quase três anos, e ficar ao lado da mãe, que quer proteger a mãe. Não recordo muito exatamente das palavras que usou, mas sei que foi nesse sentido. Descreve-se como uma pessoa agitada, que não consegue ficar quieta, na escola, fazendo coisas como entupir vaso sanitário, sujar bebedouros, e não assume, e o mais interessante, ela diz que se morde, bate a cabeça contra a parede, arranca os próprios cabelos quando fica nervosa ou quando é acusada sem ter cometido o erro. Pergunto se gosta de sentir dor. Ela diz que faz isso e lembra da mãe. Intervenho: “lembra da dor da sua mãe?” Afirma com a cabeça. Continuo: “Mas você não é a sua mãe. Você já parou para pensar por que ela casou com dois homens que batem nela? Que isso é escolha dela? Se você sair da Acopamec vai resolver?” Não sei se a pergunta de lembrar a dor da mãe foi cabível, afinal eu poderia estar dando nome a sua lembrança. Talvez tenha me precipitado. Na próxima sessão essa menina chega com um ataque de riso, com uma história de um trote, não conseguindo estabelecer qualquer lógica no discurso. Fico assistindo, e ela não consegue se conter durante toda a sessão, rindo descontroladamente. Após a sessão fico me perguntado o que essa atitude quis dizer. Ela não queria entrar em contato com a angústia? Na sessão seguinte ela retorna com silêncio predominante.

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