quinta-feira, 13 de junho de 2019

DIÁRIO DE UM MÊS


1o dia

Um mês a partir de que dia? Ora bolas! A atenção deve ser prestada no presente. Isso é lógica, filosofia, matemática, e colocam o nome de mindfullness. Depois do romantismo ainda há muitos resquícios dele. Enchente de resquícios mirando e tentando entrar na atenção plena, no diálogo lógico, analítico, objetivo. Saber misturar as cores, ser camaleoa pelo mundo é um querer.  Essa é a mais branda paixão que já vivida. Deve-se produzir, trabalhar, continuar. O estado é de paixão, um apaixonante espelho.

2o dia

O mar está muito cheio e só existe a vontade de Tom Jobim. A insônia chegou às 3:30 h com algum corpo estranho no ouvido direito. A andança tem sido um tanto surda. Vários teclados na caixa e ninguém atende. Se for um mês de silêncio absoluto, estará tudo resolvido no próximo mês - não haverá um relacionamento. Mais um. Já nem é possível saber que tipo de bicho solto se é. Olhos são cerrados para reavivar memórias dos corpos, mas a paixão é tão branda que parece convidar a desapaixonar, haja vista a repetição sintomática.

3o dia

Uma decisão com discernimento e lógica. Não há um relacionamento. Sequer alguma semente dele. Até o peito aperta e quase o choro apetece. Há um sorriso aliviado. Amores são para serem deixados livres, assim é ele todo sentimento. Uma bactéria pode ser transmitida pela boca de um homem e matar uma mulher. A mão é levada ao peito e o olhar para dentro, guardando um pouco do que há de bom, para dar pro cão. É pensado sobre a fase de consciência analítica da inveja. A inveja primordial, infantil. O pensamento está na genialidade de Tom Jobim e Dorival Caymmi e o apego ao retrovisor... isso não existe na música. Isso que faz a humanidade humana. A música é sempre o presente. É só isso. Só música.

4o dia

E náuseas depois da insônia. Vem Sartre,  Bouvoir, mas em nada tem a ver. Porque tem nada. O outro é sempre um vazio e a obra é o que move a existência. O fazer da obra, não a obra feita. A música precisa de muito silêncio, eu compreendo. O corpo vai-se arrumando nesse tempo de estio.  No silêncio absoluto da pausa de mil compassos, a mesma água nunca molhará os mesmos corpos.

5o dia

Uma concha do mar pra morar agora é o bastante. Cartas e palavras amenizam o corpo desorganizado, oferecem o suporte desafetado e preciso do bem-dizer. A imperatriz mostra o quanto o caminho fecundo foi percorrido, pede atenção a esse patrimônio. Ela é grávida tal qual a rainha do mar. Quanto às facas, impossível segurar todas, é momento de reflexão, de apaziguamento. No só depois é que se deve tomar alguma decisão sobre o próprio lugar.

6o dia

As cartas silenciaram. Silenciaram quase tudo. O romantismo parece drenado. Pela teoria da pulsionalidade, há o desvio do objeto para o qual as vicissitudes da pulsão se dirige. Ela é a dona de tudo, até das cartas. Entre o somático e o psíquico, no entre, portanto em cada ser e coisa com nome, porque sempre haverá o entre. Se já se sabe da teoria da relatividade? Não se sabe. Todo saber é suposto. É suposto que o silêncio desse som prolongado do entre dois corpos, faça surgir outro corpo, corpo cheio de novidade sobre si mesmo. É bonito e tem sentimentos ligados à prosperidade.

7o dia

O dia em que se comemora a ascensão de algum morto. Está viva a admiração e o bem-querer, mas dando os últimos suspiros as intenções de investimento libidinal. Um sufocamento pela madrugada, um carro sem trava nas portas numa ladeira íngreme engatado na macha de força subindo enquanto os olhos são ofuscados pelo sol no topo e a máquina capota. O peito formiga e incomoda. As lembranças estão lá, capotando no deserto do silêncio. As cartas ainda não voltaram pra me dizer mais nada. É denominado desinvolução o desapego. Buena vista social club na falta de uma coletânea de músicas preferidas.

8o dia

Segue o som. Se a ausência pelo fato da morte propriamente dita chegar, já estará tudo em ordem.  Antes havia o medo, agora passou. A informação de outrem acalanta: dizem que e é assim mesmo esse tipo de silêncio, pois nele há um discurso e pode haver uma produção criativa, acadêmica ou artística, por exemplo. Também dizem que o silêncio não é uma violência nesse caso. Quando o umbigo é aberto e suturado, deixa de ser o centro do universo-corpo, é preciso deixar outros centros, diversos centros, desfazer-se dos centros. Cada poro pode agora ser todo o universo, no corpo e fora dele. O som é a respiração do silêncio, ele se dá a milhões de quilômetros de distância se há ouvidos para escutar. O som é luz. Deixa alumiar.

9o dia

Já é possível descer à praia. As pedras parecem estar deslocadas depois das chuvas. Tem mais areia por cima acobertando. Algum alimento de voz foi dado ontem por alguns segundos. E foi recebido, com alívio de escutar um tom sonolento e carinhoso. Nesse dia de hoje é desconhecida ainda a direção a seguir quanto a dois corpos em voz no mundo. Ligam-se ou desligam-se. É prudente observar a dinâmica. Se há paragem, a terra continua girando mesmo assim.

10o dia

Há com certeza a sintonia inconsciente. Quando já não se sabe mais rezar, é preciso rezar. Todos rezando juntos agora. Reza para o dia nascer todo dia. Uma explicação a si mesmo diante da impotência: a doença é uma manifestação da vida. Dizem: karma. A reza é para manter a chama da vida. Chama. Reza. O corpo imerso numa banheira cheia de água morna. Reza e chama a vida. Todos estão conectados para a travessia.

11o dia

Como uma ave de rapina certeira, uma voz por tantos idolatrada agarra um corpo cheio de instrumentos musicais. Agora é o além dessa voz. Uma boa viagem. O amor é para ser deixado. De novo esse lamento. É agonia, é trabalho. Todo dia, todo dia, todo dia. Se o vazio preencher toda a entrega, haverá em breve um suicídio.


12o dia

A tentativa é realizar de maneira obsessiva, a exemplo do movimento da terra em torno do sol, do dia e a noite, das quatro estações, da maré  cheia e seca, do obsessivo rei sol que parece nunca desistir do trabalho de brilhar. Nesse movimento há folhas verdes oferecendo a cor e há folhas secas levadas pelo vento, tão vivas quanto a cor das folhas verdes. O olhar para o chão e para o alto traz em si o entendimento da visão cíclica de tudo. Até a água salgada que mina de um corpo tem fim ainda que esse corpo seja quase todo água. O amanhã que é hoje requer sempre mais força do que ontem.

13o dia

O plano de ontem para hoje talvez nunca seja cumprido. A vida é uma bomba estourando. Ressaca moral é o que há nesse dia. Sobre o que foi repensado, repetido, agora em elaboração se vê o ponto inicial da reta tangente. Milton Nascimento e muita emoção - estrada de fazer.  É  interessante como seres humanos idolatram outros seres humanos. É interessante como seres humanos tratam outros seres humanos como deuses. É escutado: deusa. De quê? O recolhimento, os rituais, a discrição, a performance, pode suscitar essa visão em tantos olhos, mas o além disso é só carne e osso e solidão. A música é a deusa, ninguém mais e nada mais nessa terra. Personificar a música em um ser humano é diminuir o potencial dela em cada um.

14o dia

Só o choro em silêncio lava a tristeza de uma saudade, de uma mágoa, de um frustração, daquilo que poderia ser mas não é. O sal descarrega o mau olhado e tudo se renovará.

15o dia

Quem sabe isso quer dizer amor.  Não há outra direção senão a do recolhimento nesse momento.

16o dia

O corpo tem sede dentro da fantasia. O silêncio da rua deserta na beira da praia realiza um desejo infantil. As coisas meio desativadas meio funcionando. Basta observar o respirar: está sempre funcionando mas parece estar desativado. Aos poucos o que era o real, a única coisa que se tinha, se transforma em miragem e a miragem aos poucos evanesce tomada pelo deserto da rua. Poderia ser apenas o silêncio, um recolhimento, um afastamento. Pode ser um tempo atendido. Pode ser o espaço contínuo para um novo encontro na beira da praia.  Na areia muitos falam muitas línguas, a água daqui é mais caliente do que no Chile e um convite ao mergulho é recusado sem cerimônia. O calendário é marcador persecutório. O tempo é uma invenção estúpida. A direção sempre será a mesma com marcador e sem marcador.


17o dia

Há um exercício para desobjetar que, quando é apreendido, torna-se mais rápido o processo. A paixão transforma-se em lembranças indolores enquanto é possível escutar as badaladas do sino da igreja a cada hora do dia. Se é mantido o holofote no sino, tudo ficaria insuportável. O som do silêncio entre as badaladas tem barulho suficiente para compor novas músicas. O cão ajuda bastante. O mar também. A família durante uma noite junina também. A desarrumação da casa, as provas previstas, a busca pela fonte do ser está à frente do romance. O romance só existe quando uma pessoa segura o corpo de outra pessoa e a auxilia a fazer estrela.


18o dia

O trabalho chama. A reza é um trabalho. Antes que esse dia acabe, a vida é parecida com a novela e com os filmes, muito mais diferente. Perguntas para entender o mundo foram agraciadas por respostas. Há um vazio enorme entre dois corpos. Nesse vazio pode estar contida a criatividade de cada um para saber lidar com esse vazio na tentativa de comunicação de si ao próximo. Cachorro marca com urina, cheira o ânus do outro. Ser humano faz girar o canto das palavras  na música por aí. Tudo é música. Por isso que há um apreço pela continuidade do homem através da mulher.

19o dia

Na noite desse dia pela cidade há provas, há compra de um novo livro, há abraços apertados e novas parcerias. As pessoas parecem aos poucos afinarem-se em seus objetivos, talvez enxergando o pouco tempo da vida. O tempo da vida. Qualquer tempo. Vai-se à Freud, vão-se aos antigos textos, vê-se a pobreza da imaturidade para o florescer de uma pessoa que escreve para não enlouquecer. O cão passeia. O filho custa entender as regras em uma comunidade. A civilização continua asfixiando o mar. Os coalas deixarão de existir em breve. Mesmo tempo em que deixará de existir a afeição por quem prefere manter a distância entre os corpos.

20o dia

A felicidade do cão livre é igual à felicidade de uma pessoa livre. A ginga, a velocidade, o olhar, os chãos em alguma parte da cidade feita na beira no mar faz da pessoa e do cão corpos dispostos a arriscar suas vidas pela liberdade. A sintonia entre os corpos é forte quando o pensamento ainda objeta no entre vazio. Um corpo pode sentir o outro vindo lá de longe, ou indo pra longe. É bom quando a notícia de muito longe é a que traz os corpos pra mais perto, bem perto, pra colar um no outro. Mais tarde, à noite, provas, beijos, abraços.

21o dia

Feliz. Está no modo de relacionar-se. O medo exala no corpo e o cão reage com latidos. O pior do medo é não saber-se medo e transformar-se em agressividade. Nunca será paz. Será sempre guerra. Viver é guerrilhar até a morte.

25o dia

O chiado da respiração nas narinas. Há pouco a se fazer. A ave de rapina hoje cedo grita no céu com asas bem abertas. É o azul e ela. Lá de longe onde toda beleza do mundo se esconde. Saramago revela a inexistência do ceu. Do inferno saem as palavras em poesia, o estado dos diabos para Bukowski. Vê-se o homem cru para o qual a mulher é apenas um costume. Quando a mulher faltar é proibido chorar. Os dias estão contados.

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