quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

 Desde criança era fácil ficar impressionada com as notícias, seja na voz da vizinha quem chegou avisando que seu Glicério morreu e precisa de alguém pra vestí-lo, seja no telejornal avisando que a nova epidemia é do ebola. Também era fácil ficar horas impressionada com a aranha tecendo sua teia embaixo da cama - ficava ali debruçada com a bunda pra cima e a cabeça enfiada o mais próximo e imperceptível que podia pra não atrapalhar o trabalho do inseto e tampouco o seu trabalho de observação. Ou admiração? Contemplação? Meditação. Parece ter sido essa criança meditativa. Explosiva também. Chorona. Num dia de meditação com aranha, alguém chegou no quarto e soltou a ponta do toalha, roçando todo o trabalho da trabalhadora e desconectando a meditação. Súbito revoltoso e ninguém entendia o que havia de tão absurdo em simplesmente passar pelo quarto se despindo de uma toalha perto de uma cama enquanto havia alguém ali no chão. O ódio em palavras vinha aos berros, mas explicava motivo.
Tobé brincava de escola com a irmã mais velha e com a irmã mais nova. A mãe garante que ela foi à alfabetização já sabendo ler. A mesma irmã que lhe ensinou ler, estudou com ela a lei da improbidade administrativa antes de Tobé tornar-se funcionária pública. Conheceu o município de cabo a rabo, com sol, com chuva, com esgoto a céu aberto, com terras deslizando e gritos de que perdeu sua terra.
Mas não é esse o motivo da história. Tobé sempre foi trabalhadora, uma leoa, quando o assunto era agilizar e contribuir pra equipe. Aos poucos o serviço público vai tirando o brio da juventude sedenta por criações, o jogo político nem se fala.
Ali nos Dois Leões tem uma ladeira enorme que subindo, subindo, é capaz de chegar no Largo do Tamarineiro. Era ali que morava nesse dia.
Chegou do trabalho e brincou um pouco com o seu filho único. Acomodou-se e todas e as luzes se apagaram pra deixar vir o outro dia.  Sábado. Ensolarado dia de faxina, de cozinha, de compras, de som alto na vizinhança, de vasculhar o necessário os materiais escolares do menino pra ver se trouxe algo que não deveria ou se tem cuidado com o que tem. Tudo certo, nos conformes. Tobé também tinha uma paixão, um músico famoso de Salvador, também era famoso na dança e publicava textos de filosofia analítica - você acredita? Emcontravam-se e amavam-se com o melhor dos humores, sempre. Ele estava pra chegar quando Tobé começa a sentir a agitação da rua. Tons de vozes aumentados, urros. Enxuga a mão na roupa e olha onde está o menino - brincando no quarto de recortar e colar, escutando música. Chega da janela e vê uma reunião de homens cercando um homem caído no chão.
Alguma coisa estava errada. Muitos em pé e um deitado. Acidente de moto? Não via moto. Caiu em um choque epiléptico? Nenhum sinal de corpo contorcendo. Ao desfocar a roda, observando o entorno pra começar a construir o roteiro da cena, Tobé escuta um urro, é o tempo somente do próximo chute e do próximo urro. Sucessivos chutes e urros sem parar. Todo mundo assistindo. Mas o que é que é isso? Escuta: "pra você aprender, seu...". Mais chutes, chutes, chutes. Tobé grita da janela: "O que é isso?" Ninguém escuta. Grita mais: "Parem com isso!" O som das pancadas, do pagode , dos urros, da música  casa, da panela de feijão começando a pegar pressão, seus gritos eram mudos.
De repente param. Muito sangue no chão. A vítima pedia "água, por favor".
Tobé entrou em casa, disse ao menino que ficasse onde estava, pegou a garrafa de água. Tinha que descer as escadas.
Tarde demais.
Ficou impressionada.

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