quinta-feira, 27 de abril de 2017

o Menina baiana - claquete 29

CENA: Outro dia só existe pra quem dorme.

O MENINA: Meus ouvidos estão cada vez mais sensíveis. O único barulho que eu não posso dar jeito é o que faz a água batendo nas pedras quando é enchente. Ou vou pra bem longe dele, lugar onde eu não viveria muito bem porque seria ficar longe de mim. Do outro lado está a África se eu o atravessar. Mas isso não é preciso porque já a trouxeram de lá e a prova disso é que eu estou aqui. A "negra", como a irmãzinha chamava. Pra ela, dá boca dela, o meu nariz não era nariz, e sim"ventas". Isso porque ela se enxergava no espelho de não sei onde, porque é filha de preto, neta de preto, bisneta de preto, preto da saúde.  Eu acreditava quando ela cantava pra mim "ovelha negra da família"... Talvez porque meu sonho nunca tenha sido uma família, ou porque eu não gostava de brincar de bonecas ou colecionar papéis de carta. Ou porque aprendi a ler sem ir pra escola, ou porque eu fui "inútil", "irresponsável", "irritante" porque disse a ela que quem era a mulher do pai dela não era nem eu nem ela. [gargalha alto e canta alto] "Ah! Bruta flor do querer! Ah! Bruta flor, bruta flor!" [gargalha] Eu sei lá o que ela queria de mim que eu nunca tive pra dar. Tem gente que é assim. Um bocado de gente é assim. Às vezes eu sou assim, ondina ciumenta. Entretanto, en-tre-tan-to, eu escuto ceu. Eu amo, eu amo, eu amo, eu amo... Será que um dia farei um disco que eu goste de escutar? Eu canto, eu canto, eu canto... Venha ouvir a ovelha negra de ouvidos sensíveis! Fale baixo. Fale bem baixo. Fique calada. Caladinha. Escute. Meu disco.


"Que Deus entendeu de dar toda magia, pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia, primeiro carnaval, primeiro Pelourinho também, que Deus deu" (Gilberto Gil)

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